VACAS GOIANAS SONHAM COM INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL?
SOBRE DELÍRIOS CYBERPUNK PARTE 1
“Eu penso na consciência como um lago sem fundo, cujas águas parecem transparentes, mas para o qual podemos ver claramente apenas um pouco. Mas nessa água há inúmeros objetos em diferentes profundidades; e certas influências darão a certos tipos desses objetos um impulso ascendente que pode ser intenso o suficiente e continuar por tempo suficiente para trazê-los para a camada visível superior. Depois que o impulso cessa, eles começam a afundar”.
Charles Sanders Peirce
I
Olá, leitor, como vai?
2025 começou, para mim, com uma sensação distinta.
Desde nosso último encontro, tive tempo para ler e não li, para escrever e não escrevi, para elaborar projetos que preferi não os projetar.
Talvez fosse a chegada do Gabigol ao Cruzeiro, a notícia do raro alinhamento dos planetas previsto para 2025 ou o fato que, nesse tempo, pisei na grama, conversei com amigos e familiares, comi churrasco e até olhei para o céu como quem não quer nada, mas ter parado de pensar constantemente no presente para poder vivê-lo me parece ter reaberto os olhos para coisas ao mesmo tempo simples e complexas da vida.
Como se, ao nadar para longe do borbulhar de ninharias cotidianas ou, quiçá, na minha própria estival inércia, meu corpo e espírito tivessem vagarosamente afundado em águas mais profundas de mim mesmo para, nestas, me proporcionarem um curioso reencontro com o Outro, com o Mundo.
“O Céu é eterno, a Terra permanece. São permanentes e eternos porque não vivem para si mesmos. E isso faz com que vivam eternamente. O sábio também é assim: Ele surge em primeiro plano porque menospreza o seu eu. Renunciando ao seu eu, a sua essência é mantida. Não é assim? Ele torna-se perfeito por não querer nada para si”, nos diz Lao Tse em Tao Te Ching, livro base do Taoísmo.
Dizer-me sábio é uma afronta que não pretendo fazer aqui, leitor. Mas digo que ter tirado meros 30 dias para não pensar em literalmente nada (algo assustador para qualquer pessoa ligada a vida intelectual), me mostrou como, até então, me sentia estúpido, fechado em mim mesmo, ensimesmado.
Ou, nas (agora sim) sábias palavras de uma página de memes com fotos de gatos:
E, por fim,
quando descansado
e reconectado ao Mundo
decidi pôr a casa em ordem
voltar trabalho e ao ofício da escrita,
me dei novamente com as mesmas polêmicas literárias e culturais sempre repaginadas que parecem nunca se esvaziar por completo do nosso imaginário coletivo.
II
O Threads parece ser o filho do meio das redes sociais.
Também conhecido como “aquele aplicativo que você entra depois de ter conferido as notificações das suas principais redes sociais como o Instagram, TikTok ou Twitter”, o Threads parece reunir pessoas que destilam pedidos exagerados de atenção em forma de opiniões polêmicas - que, numa busca contraditória de validação intelectual no mar de vídeos e áudios espontâneos que é a internet comandada pelos influencers de hoje - são escritos em forma de textos minimamente estruturados (que carregam o tom pedante de quem não sabe que está escrevendo textos minimante estruturados).
A bem da verdade, pouco se fala sobre as polêmicas que lá estão, pois, na mistura entre o espírito loroteiro do LinkedIn com a banalidade que não dá em lugar algum do Instagram, as pérolas parecem feitas literalmente sob encomenda para bombar mídia-kit de criadores de conteúdo: “cheguei na empresa que trabalhava e me demiti porque meu agora ex-chefe disse que meu espírito de liderança não combinava com a cultura da empresa”; “pode ou não pode abrir a janela do Uber durante a corrida?”; “Ir em padaria é um negócio que só quem é paulista vai entender”; “mandei DM para uma desconhecida nas redes sociais e quando nos vimos na Bienal do Livro no dia seguinte ela não fez festa comigo como um poodle carente”.
No entanto, vez ou outra um desses acidentes opinatórios sai da bolha e roda o restante da internet antes de se esfumar com a mais nova declaração de Andressa Urach nos stories. O da vez, e que me interessa em alguma medida ao ponto de trazer a guisa de discussão a você, leitor, diz respeito a “nacionalidade” da literatura brasileira e a sua relação dúbia com gêneros literários com focinhos de gringo, rabo de gringo, pata de gringo….
Mas onde começa essa história?
Bem, aparentemente, um escritor brasileiro de Dark Fantasy1 não curtiu muito um comentário negativo sobre o seu livro e achou que a melhor forma de responder a crítica seria na dita plataforma das polêmicas vazias:
A começar pelo fato do escritor do Dark Fantasy em questão escrever sob um (óbvio) pseudônimo de pachorra estrangeira que omite um brasileiríssimo nome e sobrenome; passando também pela questão do país de origem de publicação não ter exatamente o peso que autor supõe para assegurar a nacionalidade de uma obra literária2, vemos como a réplica a uma crítica simples (como também razoável) de um livro nacional que replica estrangeirismos veio carregada de camadas. Camadas demais, diria, para serem dissertadas com o devido cuidado nos 500 caracteres-limite por post do Threads.
Isto não parece ter acanhado, por suposto, a pilha de comentários sobre o assunto que se avolumou rapidamente em um par de dias.
Apesar das meras observações feitas até aqui, leitor, acredite, o que penso com esse texto não é uma crítica chã ao uso de pseudônimos com cara de estrangeiros ou aos contornos da literatura nacional (afinal, em alguma medida, eu já dissertei sobre esse assunto há alguns meses atrás, lembra?3). Até porque o que realmente desencadeou a fúria dos escritores e leitores brasileiros e que levaram esse assunto a outras latitudes da internet (na qual eu seria impactado) não foi a réplica do autor ao seu livro, mas um desses comentários feitos por terceiros:
III
Quando a direção da conversa mudou de foco e foi para a “impossibilidade de se imaginar um Cyberpunk em Goiás”, o números de comentários sobre o tema se alastrou de forma ainda mais rápida.
Em linhas gerais, e sob vários xingamentos, os internautas(-leitores-escritores-interessados-em-literatura) diziam que se um escritor se exime de escrever um livro Cyberpunk no Brasil - por não encontrar na realidade brasileira uma lógica tão condizente como das obras estrangeiras que lê -, no fim, está atestando sua falta de criatividade, incapacidade de escrever o que seja e até, em casos extremos, burrice.
Talvez um relato mais moderado e exemplar dessa pequena avalanche de posts sobre o assunto tenha sido o do autor de Olhos de Pixel (2022), Lucas Mota:
Eu fiz exatamente isso. Moro em Curitiba e escrevi um cyberpunk que se passa aqui, com capivaras mecânicas e tudo. Sabe o que aconteceu? Ganhei um [prêmio] Jabuti.
Todo autor pode escrever sobre o que bem entender, ninguém é obrigado a nada. Mas não venha insinuar que não é possível mesclar cenários e referências brasileiras a um gênero que nasceu fora do Brasil. É possível sim. Leia mais livros brasileiros do gênero e você verá.
Ao leitor desavisado, o Cyberpunk é um subgênero da ficção cientifica que ganhou seus contornos entre as décadas de 1970 e 1990 com livros como Andróides Sonham Com Ovelhas Elétricas? (1968), Neuromancer (1984) e Synners (1991) e pode ser definido pelo epiteto "High tech, Low life", isto é, narram sociedades distópicas com um alto grau de desenvolvimento tecnológico que, ao mesmo tempo, estão permeadas de graves problemas sociais em que os mais pobres se veem exprimidos por grandes corporações e ganância.

Por certo, por suas características históricas (convenhamos, o Brasil não é um país de alto desenvolvimento tecnológico, apesar da maioria da população estar vivendo um “low life”), o gênero fez, ao longo das últimas décadas, uma tradição discreta na literatura brasileira, seja em números relativos (prêmios/autores consagrados) seja em números absolutos (número de títulos e até vendas).
Se contrastarmos os números dessa tradição com os frutos antigos ou recentes das tradições da literatura mais bem estabelecidas, como a realista ou social4, vemos que, apesar da posição otimista de Mota, o mercado nacional realmente parece estar mais acostumado a imaginar um drama de classe média pelas ruas de Belo Horizonte, ou acompanhar a história de duas irmãs na Chapada Diamantina, do que vislumbrar vacas robôs em Goiás.
Diria mais, até.
De tanto amor a própria cultura - e querer ver, representado nela, suas raízes -, o brasileiro pode parecer, vez ou outra, avesso a incorporação qualquer moda ou gênero artístico estrangeiro.
E isso não se resume a literatura, mas se estende a toda amplitude do espectro cultural que participamos como, por exemplo, os grandes hits da música pop.
IV
Lançado em 5 de janeiro do presente ano, o novo álbum do cantor porto-riquenho Bad Bunny DeBÍ TiRAR MáS FOToS (2025) se converteu rapidamente em um fenômeno internacional de crítica e, paradoxalmente, público.
Segundo Tatiana Lee Rodriguez, em sua resenha de DeBÍ TiRAR MáS FOToS para a Pitchfork, se com seus últimos 5 álbuns Bad Bunny fez “música para as massas sem sacrificar sua cultura”, agora, ao entrar na casa dos 30 e ver seu país ser chamado de “ilha de lixo” num comício do atual presidente eleito dos Estados Unidos, “Benito fez uma pausa para refletir sobre esse momento sem precedentes: uma época em que a música urbana surgiu no cenário global e corre o risco de ser diluída por sua própria mercantilização”5.
Mesmo com seu tom extremamente politizado, o álbum tem colecionado críticas positivas na imprensa especializada e as 17 faixas que compõem o projeto têm dominado os charts de quase todos os países do continente americano desde seu lançamento.
Sim, quase todo, pois, afinal, no Brasil só se fala em outra coisa.
Um artista latino-americano como nós, brasileiros, não consegue se criar aqui.
“Ah, mas se tocasse música de norte-americano, vingava”, você pode argumentar, leitor.
Será?
É claro que o brasileiro conhece e curte a música de estrelas internacionais da música.
Shows realizados em anos recentes de artistas como Taylor Swift, Bruno Mars, Roger Waters, Madonna, Paul McCartney lotaram estádios e pesam nessa direção. Mas prova objetiva que o brasileiro é muito mais afeito a artistas nacionais que internacionais podem ser observadas nos dados do relatório do Mercado Fonográfico Brasileiro 2023 que indicaram que “Músicas brasileiras representam 93,5% das mais tocadas no país”6.
A questão, por suposto, não gira apenas em torno dos cantores e seu poder de individual, mas também passa pela procedência dos gêneros musicais que esses artistas cantam. Se voltamos ao gênero praticado por Bad Bunny, o reggaeton, podemos observar com facilidade que, mesmo compartilhando origens musicais semelhantes as nossas, é um ritmo de pouquíssimo interesse nacional.
Por sua vez, os gêneros norte-americanos não parecem fugir tanto assim a essa dinâmica.
Na cobertura feita pela Globo do último Rock in Rio, por exemplo, me lembro vivamente dos repórteres exaltarem os cantores brasileiros de trap - Cabelinho, Veigh, Wiu, Matuê, KayBlack, Orochi e Filipe Ret - como “o futuro da música no Brasil” dado a proficuidade de fãs jovens que os artistas colecionavam no festival.
Contudo, se por um lado o “auge” do gênero no Brasil coincide, por um lado, com as especulações de que o rap - que se tornou o mais popular e lucrativo do século XXI7 - está em vias de morrer8, por outro, todo o ethos do trapper norte-americano, emulada por cantores brasileiros, tem sido mal digerido pela comunidade do rap nacional há uns 10 anos9. Vide a polêmica declaração feita por Marcelo D2 no próprio Rock in Rio de 2024, quer dizer, ao contrário dos cânticos de glória dos artistas brasileiros, “a favela não venceu”:
Em certa medida, o que se percebe é que o ethos do trapper - que se baseia numa persona ostenta quantidades obscenas de dinheiro, conquistas sexuais irreais e bebe lean o dia inteiro - na cena de rap nacional parece um personagem caricato quando colocada num contexto como o nosso.
E a música feita por essa caricatura, soa como uma paródia.
O mesmo, sinto, é a impressão que determinados leitores têm quando leem obras de Cyberpunk ambientadas no Brasil: ao invés de comprar a ideia da narrativa, a lógica lhes parece risível, ainda mais se numa obra mal construída. Se numa narrativa pouco contextualizada.
V
Qual seria uma solução viável então para questão?
Escrever umas série de livros em uma Nova York 3.0 com os protagonistas de nome “John” e “Trixx” para se manter algum nível de verossimilhança interna mesmo que, por efeito contrário, isso resulte num deslocamento tanto da realidade do autor quanto do público? Ou, por outro lado, o autor escreva sobre Carlos, superhacker, vivendo na Fortaleza-CE do século XXIII e, quem sabe, não se dá com uma recepção do seu público leitor como a abaixo?
Podem, enfim, vacas goianas sonharem com inteligência artificial?
Descubra na parte 2 desse ensaio.
Até lá, um forte abraço.
Subgênero literário da fantasia e que mistura elementos de horror com fantasia muito praticado no mundo anglófono e para um público jovem.
Geralmente gasto algumas aulas da disciplina de Teoria da Literatura sobre esse assunto, mas, como contraponto ilustrativo momentâneo, pense nos jornais de judeus exilados em Nova York que eram feitos durante o século XX por e para exilados, muitas vezes completamente em Yiddish.
Pense, por exemplo, no impacto financeiro e cultural de obras como Torto Arado (2019), do escritor Itamar Vieira Junior, e Tudo é Rio (2014), de Carla Madeira, para a literatura brasileira do século XXI. Existe algo perto disso vindo do Cyberpunk nacional?
Pitchfork, 2025. https://pitchfork.com/reviews/albums/bad-bunny-debi-tirar-mas-fotos/
CNN Brasil, 2024. https://www.cnnbrasil.com.br/entretenimento/musicas-brasileiras-representam-935-das-mais-tocadas-no-pais-diz-pesquisa/
Business Insider, 2018. https://www.businessinsider.com/hip-hop-passes-rock-most-popular-music-genre-nielsen-2018-1#
As especulações começaram com a informação que, em 2023, nenhuma música ou álbum de hip-hop conseguiu um número 1 nos charts norte-americanos (https://www.vibe.com/music/music-news/no-hip-hop-songs-albums-charted-1-2023-1234764813/). Eu sei que você deve estar pensando que toda a treta do Drake e do Kendrick Lamar provaria o contrário, quer dizer, o rap se provou “muito vivo”. Mas alguns ensaístas dizem que isso é um prenuncio ainda mais claro de seu fim eminente. Afinal, quanto mais perto do fim, mais o rap precisaria se provar vivo.
Parte dessas polêmicas iniciais foram tratadas no vídeo-ensaio “A Odisseia Raffa Moreira” (2019) do canal Quadro em Branco.
Aguardando a segunda parte! Eu não achava possível vacas goianas sonharem com inteligência artificial até conhecer o trabalho do Vinicius Portella, brasiliense com ótimos livros de contos sobre tecnologia. Agora estou começando a sonhar.