I
Para começarmos o texto, caro leitor, uma pequena anedota.
Desde o último Congresso da ABRALIC1, celebrado em Salvador, um especifico comentário feito por Laura Erber em sua exposição “Nas malas da crítica: notas sobre desafios à internacionalização da literatura brasileira” não para de roer meus pensamentos.
Posta na MESA 10, dedicada ao tema de uma “crítica sem juízo”, a pesquisadora e autora já chamava a minha atenção por, no inicio de sua fala, dizer que tomaria uma postura mais “pragmática” - postura essa tão pouco usual nesse tipo de evento - sobre o assunto e, por suposto, Erber fez jus ao adjetivo escolhido.
Assim, após dizer a mera crítica de comentário está fadada a obsolescência - dado o uso das IAs como CHATGPT - e caracterizar a mais recente estratégia de internacionalização da literatura brasileira por meio da lusofonia como um erro, Erber lançou a ideiafixa que ainda hoje faz morada em um recôndito brumoso da minha mente:
O fenômeno de internacionalização da Clarice Lispector é um caso a parte, pois, para torná-la uma autora internacional a estratégia adotada foi de torná-la judia. Ou seja, “Deixou de ser brasileira para ser judia”.
Ainda ouviria outros importantes pensadores da literatura naquela MESA 10. Frequentaria outras palestras e comunicações da ABRALIC. Jogaria papo fora nos cafés do evento. Sairia com amigos e conhecidos no aprazível inverno baiano e, de Salvador, traria para Minas a melhor experiência possível da cidade e seu povo.
Mas aquela ideiafixa que me lançara Erber com certa casualidade seguiu ali, encrustada, mesmo quando voltei aos meus afazeres pós-evento.
Por suposto, o mais estranho do fato a mim apresentado naquele 13 de julho, sem dúvidas, não era que Clarice fosse tomada internacionalmente como judia - que inegavelmente fora -, mas a contradição inerente exposta pelo que a escritora parecia acreditar, em vida, de sua própria identidade não só pessoa, mas, além disso, como escritora.
Quer dizer, era conhecido no meio literário que Lispector “Sempre se indignou diante do fato de que havia quem relativizasse a sua condição de brasileira” como relata seu biógrafo - e parte atuante na internacionalização da mesma - Benjamin Moser. Faz sentido, então, essa transformação identitária em troca de uma carreira internacional?
O tema é quente.
Anitta - prometo, esse comentário não tem sarcasmo -, por exemplo, parece lidar com questão semelhante dia sim dia não, sendo a mais nova polêmica da cantora fundamentada no fato que sua tour Baile Funk Experience não ter shows no Brasil.
Contudo, quanto mais a ideiafixa circula em minha mente, entre a preparação de aulas de literatura contemporânea e a correção de trabalhos de teoria literária, mais a vejo conectada a uma questão mais espinhenta e longeva dentro do âmbito acadêmico e institucional:
nacionalidade, num contexto literário, ainda vale de alguma coisa?
II
Suponho que a pergunta acima pode soar novidade para muitos e ultrapassada para alguns visto que há mais ou menos uns 30 anos o debate circula com certo vigor dentro dos centros de pesquisa em literatura e de tanto em tanto tempo dá o ar da graça em mofados suplementos culturais de grandes veículos de circulação.
Entre causa e efeito, os debatedores recorrentes e ocasionais do assunto tendem a compreender o impacto do neo-liberalismo no sistema literário nacional e a capilaridade da identidade pós-moderna na literatura contemporânea como fatores determinantes nesses fenômeno.
Apesar dos palavrões acadêmicos, caro leitor, o que parece ser observável pelos pesquisadores e especialistas pode muito bem ser visto também por qualquer neófito do mundo das letras: as literaturas nacionais - junto com os Estados democráticos liberais como um todo - estão enfraquecidas.
Pois, de maneira muito curiosa, uma nova contribuição para a longa peleja parece ter se dado há mais ou menos um mês quando o escritor Cesar Aira deu uma curta declaração que fez nossos letrados conterrâneos ficarem em polvorosa
Me explico.
Cesar Aira é um escritor há muito divisivo na Argentina. Tem os que odeiam e tem os que amam suas ridiculamente curtas e recorrentes - o argentino já publicou mais de 100 livros - obras regadas por um realismo mágico secular2 .
Dada a nova leva de publicações que Aira terá no Brasil pela editora Fósforo, o já ancião escritor se deu ao trabalho de responder a uma bela entrevista - recomendo fortemente a leitura da mesma - concedida ao jornal O Globo em que, entre outras coisas, nos brindou com a seguinte pérola:
[Entrevistador] Você já disse que escreve para que os habitantes do futuro possam reconstituir a Argentina caso ela despareça. Livros tão delirantes podem reconstituir um país?
[Aira] Acho que exagerei um pouco (risos). Talvez tenha dito isso para épater la bourgeoisie (escandalizar a burguesia). A realidade é o cimento que uso para inventar. Um amigo meu diz que gosta dos meus livros porque eles são realistas a tal ponto que deixam de sê-lo e levantam voo. Mas é como disse o escritor francês Jacques Vaché: “Não há nada que mate tanto um homem como obrigá-lo a representar seu país”. Ele se referia à guerra, mas vale também para a literatura3.
Apesar do próprio Aira reverenciar a "literatura brasileira" na mesmíssima entrevista, o comentário parece ter ganhado tração nas provincianas letras nacionais, especialmente na voz de romancistas brasileiros pouco familiarizados com as paisagens nacionais e a um público leitor, de forma a basear um argumento assustadoramente indulgente: o apego a símbolos nacionais não só está fora de moda como até mesmo impõe elementos fascistóides à genialidade pouco tropical de escritores pouco lembrados pela crítica e - principalmente - pelo público. Logo, uma literatura feita por brasileiros situada na Europa ou Estados Unidos, escrita em francês ou inglês, com personagens completamente distante do futebol e samba nacionais é mais que uma dissonância: é uma revolução.
Em resumo, seriam uma espécie de Anittas ao contrário (ou contranittas na falta de um termo melhor): buscam um senso de internacionalização, porém, não pelo que os gringos podem ver de distinto na experiência brasileira mas pelo que ambos teriam cosmopolitaneamente em comum.
O que assusta na reação brasileira, por suposto é o salto à complexidade do tema em favor de um um movimento pelo "fim da literatura nacional" baseado em um capricho falacioso.
O laureado Ernest Heminway, por exemplo, tem seu lugar assegurado no cânone da literatura estadunidense. Poucos diriam o contrário. E o escritor garantiu esse espaço escrevendo sobre um pescadores cubanos, combatentes espanhóis e boêmios franceses.
Já Vargas Llosa, também ganhador do Nobel, tem seu nome garantido em qualquer aula de literatura peruana, independente de seus vacilos extra-literários ou contar histórias sobre a Republica Dominicana sob o dominio do ditador Rafael Leónidas Trujillo (A festa do Chibo) ou sobre a Guerra de Canudos ocorrida no Brasil (A Guerra do Fim do Mundo).
O próprio conterrâneo de Aira, Julio Cortázar, escreveu alguns dos melhores contos do século XX inteiramente ambientados pelas ruas de Paris e nem por isso é menos quisto dentro da tradição da literatura argentina.
Talvez uma pergunta mais interessante, nesse contexto, não seja sobre a validade da nacionalidade na literatura, mas sobre a qualidade das obras nacionais que tem sido produzidas: a literatura brasileira ainda tem apelo com algum público (nacional ou internacional)? Ou mesmo, poderíamos ir além e nos questionar:
O que a literatura dos contranittas realmente tem a oferecer? E para quem?
III
Em 2010 o mesmo escritor argentino César Aira já falava das origens da literatura nacional no Encuentro de Literaturas Americanas. Naquela ocasião, disse o autor:
Parto da hipótese de que uma literatura se torna nacional, e é assumida como sua pelos leitores dessa nação, quando se pode falar mal dela, e não quando se pode falar bem4. Qualquer um pode fazer esta última, com ou sem sentimento de pertencimento.
Suponho que seja fácil falar mal da literatura brasileira.
Hoje mais do que nunca: o mercado literário brasileiro encolhe a cada trimestre; o antigo sistema de critica literária foi implodido e o surgimento de um novo - sob a égide das grandes corporações e do século das collabs - pouco privilegia a produção nacional; e, realmente, houve um sequestro recente dos símbolos nacionais (em todo mundo, diga-se de passagem) pela extrema direita em sua inextinguível crise estética.
O resultado desse caldo pode ser exemplarmente resumido no meme abaixo:
Contudo, ainda me parece que o motivo da birra dos contranittas é completamente equivocado.
Ao contrário do que o frouxo argumento que tais autores usam, a literatura brasileira tende muito mais a ser lembrada na cabeça das pessoas (faça o teste em sua casa) por autores que pouco fizeram ao nacionalismo verde e amarelo em seus projetos literários - como a própria estrela internacional Clarice Lispector, o sempre reverenciado Machado de Assis, as figurinhas carimbadas como Guimarães Rosa ou Ana C. e até mesmo o mais recente Itamar Vieira Jr. - do que figuras notadamente ligadas a um projeto literário-artístico oficial brasileiro, como Alencar, Olavo Bilac ou Gonçalves de Magalhães.
Por outro lado, escrever visando uma tão imaginária comunidade global quanto a nacional em uma língua do momento pode muito mais parecer um movimento delirante de maquiar a pobre qualidade de certos projetos literários do que de ser um voo à Literatura-Mundo (totalmente alcançável pela literatura nacional).
Afinal, o que de fato sustenta uma obra, via de regra, é sua qualidade.
E se esses autores estivessem mais preocupados em aceitarem criticas e não culpar o cliente por uma recepção morna, talvez assim, independente de escrevem sobre alpes suíços ou bucólicos morros mineiros, leríamos suas obras, genuinamente brasileiras, com afinco.
Um forte abraço,
“Associação Brasileira de Literatura Comparada”, conhecida como a maior entidade das pesquisas em literatura no Brasil.
Realismo mágico secular esse chamado hoje pela critica do século XXI de “insólito”.
Grifo meu.
Grifo meu.