I
Há alguns meses, me pus a pensar sobre as novas relações entre a critica artística e de entretenimento, as obras próprias criticadas e o público.
Àquela altura, pude perceber como, entre gatekeepers rancorosos em perder sua posição de prestígio frente a sociedade (mas principalmente frente a indústria que lhes pagava o pão) e entusiastas da democracia da opinião pública (mesmo que essa democracia signifique um mar de controvérsias), a crítica, como a caracterizou Jerry Saltz, “está suspensa”.
Mas seria mesmo a primeira vez que a critica entra em curto? E seria mesmo bom para público e obras que tenhamos uma crítica suspensa?
II
O ano era 1915. O ar era gelado. As ruas seguiam seu fluxo rotineiro. E, desde o horizonte, uma verdadeira revolução se aproximava sobre o ainda imponente Império Russo.
Nada disso parecia afetar o jovem poeta que, na ânsia de botar sua palavra a guisa, entra em praça pública com firmeza e logo se posta a gritar, a plenos pulmões, versos energéticos para uma plateia ambulante.
"É preciso ter sempre diante dos olhos o auditório para o qual o poema se dirige. Isto adquire particular importância agora, quando o meio principal de comunicação com a massa é o palco, a voz, o discurso direto", diria posteriormente aquele agente da ação artística.
A plateia, antes dispersa no vai e vem do calçamento, começa a se amontar diante daquele homem a cantar.
Do que tratava a obra desse vate? Seriam versos de amor? De guerra? Falaria sobre o assombro e a fascinação do desenfreado progresso maquinal e elétrico visto a olhos nus diariamente no alvorecer de um novo século? Da urgência de uma mudança social?
É possível que o vigoroso poeta tratasse de todos esses assuntos.
Contudo, uma canção específica de seu, poderia parecer hoje uma curiosidade se não fosse parte inerente de seu grito de liberdade. O hino, de fato, do qual menciono, parece exaltar… o critico.
Da paixão de um cocheiro e de uma lavadeira
Tagarela, nasceu um rebento raquítico.
Filho não é bagulho, não se atira na lixeira.
A mãe chorou e o batizou: crítico.(…)Será preciso muito para ele sair da fralda?
Um pedaço de paro, calças e um embornal.
Com o nariz grácil como um vintém por lauda
Ele cheirou o céu afável do jornal.E em certa propriedade um certo magnata
Ouviu uma batida suavíssima na aldrava,
E logo o crítico, da teta das palavras
Ordenhou as calças, o pão e uma gravata.Já vestido e calçado, é fácil fazer pouco
Dos jogos rebuscados dos jovens que pesquisam,
E pensar: quanto a estes, ao menos, é preciso
Mordiscar-lhes de leve os tornozelos loucosMas se se infiltra na rede jornalística
Algo sobre a grandeza de Púchkin ou Dante,
Parece que apodrece ante a nossa vista
Um enorme lacaio, balofo e bajulante.Quando, por fim, no jubileu do centenário,
Acordares em meio ao fumo funerário,
Verás brilhar na cigarrera-souvenir o
Seu nome em caixa alta, mais alvo do que um frio.Escritores, há muitos. Juntem um milhar.
E ergamos em Nice um asilo para os críticos.
Vocês pensam que é mole viver a enxaguar
A nossa roupa branca nos artigos?
Pois, o “Hino ao poeta” de Vladimir Maiakóvski, que de lisonjeiro não há muito, parecia ecoar um sentimento em comum aos que ouviam a voz do poeta e o próprio bardo: a crítica deve ser suspensa.
Sem mais mirrados críticos ou aristocratas a imporem suas vontades sobre o público e povo. Urgia no coração das massas restabelecer relações sem doutos mediadores ou árbitros da vida pública. Abaixo com os fajutos pedestais. Era hora de uma ação direta. De uma comunicação direta.
Povo e Poeta.
Poeta, também povo, e Povo.
Por certo, Povo e Poeta botaram a boca no mundo e as mãos em armas para a realização de seu desejo em comum, isto é, um Futuro melhor, distante da titânia hierárquica.
Contudo, instalada a revolução e o crítico deposto, seguiriam Povo e Poeta compartilhando dos mesmos interesses?
III
O ano é 2024. A noite banha os moradores de uma habilitação em festa. No horizonte, nenhum sinal de revolução a vista: a casa é monitorada 24 horas por dia.
Num clima de descontração, um jovem rapaz parecia impelido a cantar, sob o ávido olhar público, uma canção a uma jovem moça.
"É preciso ter sempre diante dos olhos o auditório para o qual o poema se dirige. Isto adquire particular importância agora, quando o meio principal de comunicação com a massa é o palco, a voz, o discurso direto", poderia ter pensado o rapaz no momento de seu ato poético.
De que tratou a canção do vate?
De amor, é claro.
Baiana, você me bagunçou,
pirei em tua cor nagô, tua guia
Se a declamação do participante do BBB Lucas “Buda” Henrique para a também confinada Giovana Pitel pareceu banal a ambos naquele momento, aos milhares de espectadores que viram a cena, e especialmente para a esposa de “Buda”, a Camila Moura, pareceu algo bem mais que banal. E, por suposto, os versos se tornaram motivo de uma sanha pública que a cada dia se tornara mais e mais desproporcional.
A agora ex mulher do BBB tratou o episódio como traição e desde então passou a destilar todo seu rancor no incomunicável cônjuge através das redes sociais.
O público, faminto por uma fofoca quentinha, foi aos montes atrás da fonte primária e, em poucas semanas, Camila passou de menos de mil seguidores para quase 3 milhões.
O sucesso desproporcional da professora de história (assim como o uso questionável desse sucesso para publicidades duvidosas como o “jogo do tigrinho”) nas redes, no entanto, trouxeram uma boa dose de desconforto aos novos mediadores do Povo (e eles próprios Povo): os influencers.
No alto de seus ofícios, estes não parecem crer no sucesso escândalo na sua agora colega de profissão: como pode uma pessoa que não produzia nenhum tipo de conteúdo angariar um sucesso desses? Como pode, por outro lado, pessoas que trabalham arduamente por um espaço nas redes sociais - lutando diariamente contra moinhos de ventos, algoritmos e si próprios em troca de atenção - não conseguirem uma fração brilho e dinheiro que a ex do futuro ex-BBB? Como pode, afinal, os novos enterteiners do século XXI - os dançarinos do tik tok, os streamers, as blogueiras fitness, os comediantes e, por que não? os críticos de roda-aba - terem de se contentar com as migalhas do público enquanto uma pessoa, apenas pelo fato de ser traída, recebe uma chuva de likes, views e comentários?
“Sou poeta. É justamente por isso que sou interessante", escreveu em sua biografia Maiakóvski em 1930.
Será?
Quão interessante é um poeta ou, ainda mais, um crítico frente a uma gostosa peleja a céu ou tela aberta?
IV
Apesar de seu direto contato com o Povo, nem sempre Maiakóvski e o mesmo mantiveram uma boa relação.
Segundo Ricardo Lisias, em “O poeta da revolução”, algo que causaria enorme desgosto ao poeta era o fato de, sob as constantes as acusações de elitismo, sua obra não ter sido bem assimilada pelos revolucionários de primeira hora.
Simplesmente, as pessoas diziam que ele não era um poeta compreensível para o público em geral. A isso ele sempre respondia que jamais poderia baixar o nível: as massas é que precisavam se educar. No entanto, esse paradoxo sempre foi um problema para ele, homem político por excelência.
É esse o conteúdo, por exemplo, da ‘Carta aberta aos operários’, redigida em 1918: ‘A revolução do conteúdo socialismo-anarquismo é inconcebível sem a revolução da forma: o futurismo. Disputem com avidez os pedaços da arte sadia, jovem e rude que lhes entregamos".
Sem mediadores e sem críticos, educaram-se os jovens? Ou o poeta precisou se tornar mais e mais belicoso para reter repetidamente a atenção de seu público Leiamos os primeiros versos de “A plenos pulmões”, publicados em 1930, para nos aprofundarmos nas questões.
Caros camaradas futuros!
Revolvendo a merda fóssil de agora
perscrutando estes dias escuros,
talvez perguntareis por mim. Ora,
começará vosso homem de ciência,
afogando os porquês
num banho de sabença,
conta-se que
outrora um férvido cantor
a água sem fervura
combateu com fervor.
Por quanto tempo uma pessoa há de ter fervor para combater a “falta de educação poética” de seu público?
É isso sustentável?
Bem, no caso de Maiakóvski, não. Como nós lembra Lisias
Nos últimos anos, mesmo sem ter sido completamente aceito pelas massas, Maiakóvski já é um poeta importante e conhecido em todos os meios, oficiais ou não, da nascente União Soviética. O poeta, no entanto, parece cansado e desgastado depois de anos de contínuos embates públicos. Em 1930 ele se suicida.
V
Sim, a critica, como a conhecíamos, está suspensa.
E o que parece ter nos sobrado no momento, na democracia da informação - mantida por e pelos interesses dos oligopólios tecnológicos - é um sistema sem hierarquias.
Onde um crítico de forma alguma pode determinar a opinião alheia, seja para construir ou destruir carreiras.
Onde “ser poeta” ou “crítico” de forma alguma te faz mais interessante do que alguém que dança, faz esquetes de comédia ou simplesmente comenta sobre sua própria vida em frente a uma câmera. Contudo, em igual medida, é recompensado - pelas ferramentas fornecidas por e pelos interesses dos oligopólios tecnológicos - o que destes for mais barulhento, curto e emocionalmente cativante. Independente da qualidade do poema, da crítica, da dança, da esquete ou da fofoca.
A sanha pública, a inflar, chocar e destroçar egos, sempre será o ponto final desse jogo das redes.
A pergunta que fica é: poderão os críticos de roda-aba sustentar esse discurso belicoso de embates públicos a troco de atenção por muito tempo?
Só o tempo dirá.
Um forte abraço,