Dia 20 de dezembro de 2022. O pesquisador e youtuber Alexandre Linck (Vargas) abre seu twitter (sempre o Twitter) e lança sobre seu público um estranho questionamento: “Papo sincero. Desde que comecei o canal, eu até hoje não entendo pq veem tanta polêmica no que eu falo.”
Curiosamente, no mesmo dia, Linck anunciaria seu mais recente vídeo-crítica: “Acabei de gravar um vídeo sobre a treta envolvendo artes feitas por inteligência artificial”.
Seria esse um caso isolado a assombrar o dissimulado Linck? Pouco provável.
A bem da verdade, o youtuber se utiliza (muito bem) da polêmica como método para manter seu público engajado: repetidamente debocha de seus críticos; acusa quadrinhistas, editores e público de A ou B; e, literalmente, publica seus vídeos em tons polêmicos. Afinal, anunciar um novo vídeo como “POLÊMICA!!! NETFLIX ESTÁ DESTRUINDO O CINEMA! A pirataria é o futuro?”, como o mesmo o fez em 14 de dezembro, parece um tanto quanto on the nose sobre sua tática de engajamento. Isto é, se embrenhar propositalmente em temas polêmicos e, quando não os há, criá-los com as próprias mãos (ou palavras, nesse caso) para surfar na húbris dos ofendidos, dos exaltados ou dos meros transeuntes, sempre atentos a um acidente automobilístico ou intelectual.
Com efeito, de toda a verborragia aplicada por Linck, o mais interessante é sem dúvida a sua autobajulação (clássica tática polêmica), quando, por exemplo, se concede, sarcasticamente, os créditos da republicação de Pinóquio de Winshluss no Brasil:
Por que interessante? Você pode estar se perguntando. Ora, o fato é cristalino: Linck se vê como o próprio Alvaro Lins dos quadrinhos. Com todo seu poderio intelectual - obviamente influenciado pelo bom, velho e ultrapassado humanismo -, Linck demonstra uma freudiana vontade de se ver na posição de prestígio de seu antecessor, quer dizer, um crítico respeitado pelos intelectuais e temido pelos quadrinhistas.
As seguintes palavras de Francisco da Cunha e Silva Filho sobre o “Imperador da crítica” literária poderiam muito bem serem entendidas, atualmente, ao que Linck aparenta almejar para si:
Seu raio de ação na incansável atividade de crítico, suas posições vigorosas, destemidas e sua independência intelectual provavelmente tenham levado o poeta Carlos Drummond de Andrade a chamá-lo de “Imperador da Crítica,” antonomásia que esconde um tanto de sutil ironia, dado que o primeiro elemento do sintagma, “imperador,” (…) não deixa de remeter a um sentido plurívoco, i.e, soberania crítica, espírito de liderança, autoridade intelectual, poder de controle sobre valores estéticos, bem ajustado, por sinal, àquela declaração de guerra contra Lins feita por Fausto Cunha, ou seja, a “(...) da luta contra a perpetuação da mentalidade critica que lhe parecia simbolizar.”
Tal posição privilegiada de Lins, por suposto, só seria possível na primeira metade do século XX por meio da “rodapé” que, "Situado entre a crônica e o noticiário, o rodapé [dos jornais de grande circulação] era assinado por intelectuais, que, a exemplo de [Álvaro] Lins, cultivavam a eloquência e a erudição com o intuito de convencer rapidamente os leitores num tom mais subjetivo e personalista", como afirma Claudia Nina.
Coincidentemente, essa “crítica de rodapé”, praticada nos jornais e suplementos culturais do princípio do século passado, igualmente tinha, por seu caráter personalista, polêmicas quase diárias que, ao contrário do que se pode imaginar, possuíam um importante papel na formação da vida intelectual nacional. É o que defende João Cezar de Castro Rocha ao tentar explicar a má vontade que cerca a polêmica entre nós, críticos e leitores da majoritária crítica acadêmica que ascendeu no país a partir da década de 1960, visto que:
o gesto subjacente ao debate intelectual supõe assumir a própria voz, reconhecendo no interlocutor idêntica capacidade. É bem verdade, (…), que, no âmbito da polêmica, uma estratégia usual é exatamente desqualificação do adversário, mas, mesmo em situações assim extremas, só se pode desqualificar o oponente a partir da leitura crítica de seus textos.
E é aqui que as coisas tornam-se ainda mais interessantes, pois, escrita em 2011, a declaração de Castro Rocha, no livro Crítica Literária: Em busca do tempo perdido?, apenas vislumbrava um retorno de uma crítica semelhante a de “rodapé” justamente com a chegada da internet e a possibilidade uma nova forma de comunicação com o público consumidor desse tipo de comentário intelectual:
Contudo, antes que algum arauto da precariedade tupiniquim faça soar as trombetas do apocalipse inevitável [sobre a morte da crítica acadêmica], recordo de novo o óbvio: mais do que um problema brasileiro, estamos diante de um fator típico do mundo contemporâneo, já que, vale repetir, numa cultura dominada pelo universo audiovisual e digital, o texto impresso deixou de ser o veículo principal de transmissão dos valores culturais.
Essa nova crítica, cogitada por Castro Rocha, é, assim, exatamente a produzida em vídeo (majoritariamente no YouTube mas também no TikTok e Instagram) utilizada por Linck para propagar suas próprias (e novas) polêmicas.
Efetivamente, para além do constante ladrar de Linck, o que já podemos perceber desse novo momento da crítica literária, cultural e, vejam só, quadrinhista, é que, com o estabelecimento das redes sociais e o consumo de conteúdos por vídeos, o fazer crítico parece retornar as suas raízes e o contato com um público por décadas negligenciado pela crítica acadêmica.
Linck, como outros (PH Santos para o cinema, por exemplo), são, nesse sentido, apenas a primeira geração a remodelar essa crítica voltada não para si mesma, especializada e pouco comovida com tabus sociais, mas para o público leigo, amante e amador das artes e eventuais arranca-rabos nesse populado ambiente de grandes egos.
Claro, essa crítica, que ainda tem muito a crescer e se desenvolver nos próximos anos, também encontrará logo mais os seus algozes pelas mãos dos próximos Afrânios Coutinhos, Antonios Candidos ou Roberto Schwarzes dos quadrinhos. Mas enquanto aguardamos por estes, continuemos a apreciar ou engajar nas polêmicas semanais na nova crítica de roda-aba.
Um forte abraço,
João Cezar de Castro Rocha é plurivalente e por isso muito interessante. Ajuda a quebrar um esquema empoeirado de se fazer descobertas acadêmicas, e aí frustra algumas concepções de grupos hegemônicos justo pela força de seus argumentos sempre embasados em pesquisas quase sempre de fonte primária. Sua atuação é uma ajuda e tanto para o fazer crítico nas humanas do país.