I
Há meses tenho evitado escrever textos longos. Por conseguinte, há meses tenho evitado escrever este específico texto.
Os assuntos que o rodeiam, não obstante, não me escapam das viagens de ônibus, horários vagos na escola e pequenos solilóquios antes do café da manhã (minha namorada sabe bem como, pego num assunto que me fascina, tendo a gesticular energeticamente sozinho, como se defendesse uma proposta de saneamento básico num debate televisionado para a prefeitura de Pasárgada).
O motivo que tenho evitado este texto, leitor, não é a grandeza bilionária no filme da Barbie, o catatônico estado da crítica artística e cultural na contemporaneidade ou mesmo a audácia em sugerir um novo epíteto para o século XXI.
Não.
O motivo é muito mais banal que isso: sem me avisar, a letra i do meu computador deu para não funcionar mais.
Pode parecer algo sem muita importância, mas esse simples fato foi algo que afetou profundamente a minha escrita.
Literalmente.
Pois, de molho da escrita de fôlego e encafifado com as conexões que ligariam temas talvez díspares, retomei a leitura de alguns textos, travei diálogos com amigos, ouvi podcasts, gesticulei e gesticulei…
Por fim, não cheguei a uma posição final sobre o sistema de esgoto de Pasárgada, mas, quiçá pela leniência do meu computador que, do canto do balcão ou da minha mesa de trabalho, tivesse assistido todo esse tempo a dar-me com leituras e sobrancelhadas, a letra i retornou a sua função original.
Honrando o acordo tácito selado entre homem e máquina, me ponho, nesse momento, a elaborar, em texto, algumas considerações sobre os assuntos aventados.
Comecemos então com uma pequena celeuma apresentada no Into it, podcast cultural da Vulture, justo semana passada: se não se julga um livro pela capa, pode-se criticar um romance pela forma como o seu autor se apresenta ou se comunica nas redes sociais?
II
O escritor norte-americano Brandon Taylor lançou no começo deste ano o seu mais recente romance intitulado The Late Americans (2023). No livro, que retoma a ambientação da pós-graduação vista em seu primeiro livro, Mundo real (2020), Taylor narra a vida de um grupo de estudantes de MFA (“Master in Fine Arts” - algo semelhante, no Brasil, ao doutorado em Escrita Criativa da PUCRS, porém mais abrangente) sem muita perspectiva tentando se descobrir num mundo contemporâneo.
A recepção da obra tem sido positiva. Colecionando elogios da Rolling Stone, The New Yorker, Esquire, Vulture, The Guardian e tantos outros grandes veículos de mídia, The Late Americans contribuiria para a consolidação de uma carreira que ascendeu meteoricamente desde 2020 quando Taylor, já com seu primeiro romance, havia sido finalista do Man Booker Awards.
Não obstante, dentre esta coleção de elogios, um texto em particular, publicado na revista Slate, chamou muita a atenção pela forma no mínimo curiosa como concebeu sua crítica ao livro.
“A escrita online de Brandon Taylor é vibrante, engraçada e verdadeira. Por que a ficção dele está tentando tanto ser outra coisa?”, se pergunta Laura Miller logo na chamada de sua crítica. Por suposto, o cerne do texto de Miller gira em torno da “falta de humor” do livro de Taylor, algo que a crítica acredita ser “out of character” para um autor de expressão “alegre” como este supostamente exibe tanto em seu Twitter quanto em sua newsletter aqui mesmo no Substack.
Em uma primeira camada da questão levantada retoricamente por Miller, poderíamos, por suposto, começar pelo mais elementar:
Não
não somos obrigados, enquanto pessoas físicas, com pensamentos e emoções particulares, a imputarmos nossa própria voz e personalidades em nossos projetos literários.
Se “O poeta é um fingidor”, como já dizia Pessoa em sua “AUTOPSICOGRAFIA”, imagine um romancista que, por convenção de gênero, ficcionaliza personagens, ações, tempos e temperamentos.
Já a resposta do próprio Taylor sobre o assunto (concedida ao Into it), contudo, bem poderia ter agradado a Miller que tanto aprecia os tweets do autor de The Late Americans por seu
(…) padrão gentil e irresistível de observações, comentários perspicazes, declarações sedentas, perguntas inúteis, fofocas e confissões tímidas, [isto é,] essa cascata que vai aparecendo como check-ins regulares com um amigo próximo - o colega de classe inteligente e atrevido cujas piadas sussurradas e confidências na hora do almoço são a única coisa que manteve você são durante o segundo ano.
Quer dizer, se Taylor defende o ato crítico frente ao discurso acadêmico como uma força democratizadora sobre a Arte hoje - como muito bem observada na internet -, o autor complementa sua fala com uma indireta bem ácida para a crítica da Slate: “Mas também deveríamos trazer os gatekeepers1 de volta. [A situação da crítica] Está ficando estranha”.
Em uma segunda camada - neste caso, sob o ponto de vista contextual - da questão, podemos sair um pouco dessa polêmica em específico para confirmar que
sim,
a situação da crítica está ficando estranha
e sim,
cada vez mais escritores (ou criadores de conteúdo que escrevem) passarão a serem criticados por seus perfis online.
III
Os gatekeepers da crítica, convocados por Taylor, já se encontravam entre nós bem antes da polêmica dada com The Late Americans e o texto de Miller.
Só o que bastou para estes, ensandecidos com as práticas da nova crítica moldada pela internet - imbuída de engajamento personalista por críticos de princípios, valores e, quando sobra tempo, obras de arte ou expressões culturais -, botarem a boca no trombone ou, nesse caso, nas trombetas do apocalipse foi um fenômeno cultural global chamado Barbie (2023).
A invasão cor de rosa provocada por Barbie (2023) foi e será, sem dúvidas, o acontecimento do ano: falar bem, falar mal, falar que assistiu mil vezes, falar que não assistiu nenhuma vez, falar que não é lá essas coisas, falar das críticas profundas, falar que o filme é raso... O que não se pode fazer, contudo, é não falar (gesticular e gesticular) sobre o filme da boneca da Mattel.
Fenômeno espontâneo? Também.
Acreditar que não houve um marketing muito bem calculado com influencers, marcas e produtos para tornar o filme o colosso de hype como este veio a ser? Seríamos ingênuos se acreditássemos nisso.
Por suposto, a A24, produtora do filme, tem contribuído para uma reinvenção do marketing na indústria fílmica.
Ao não se utilizarem (muito pela falta de grana) de agências de publicidade, outdoor e mídia tradicional, a produtora, desde a década passada, passou a apostar em virais, memes e todo o potencial da internet para tornar a divulgação de suas produções possíveis.
Tais táticas, tão elogiadas pela sua engenhosidade, tem sido repensadas dentro de Hollywood e dos grandes estúdios como uma forma mais barata e efetiva de se marketear os filmes no presente século. O ônus da questão, no entanto, já está posto: boatos recentes dizerem que se atores ou atrizes, independente da qualidade técnica na atuação, perderão seus papéis se não tiverem seguidores no Instagram o suficiente.
Assim como escritores (produtores de conteúdo que vir a escrever livros) estão sendo julgados por sua presença online no século das collabs, também os atores (produtores de conteúdo que podem vir a atuar) terão suas métricas de influência pré-avaliadas antes de um produto-evento-collab ser lançado.
Mas a nova prática não estaria apenas afetando o mercado dos atores, diga-se de passagem, hoje em greve por melhores condições de trabalho.
Essa reformulação das relações entre público, produtos (culturais, artísticos ou de puro entretenimento), marcas e os influencers também estaria resignificando completamente o papel da crítica cultural e artística.
E foi justamente sobre essa relação que a gatekeeper Manuela Lazic escreveu seu em seu texto para o jornal The Guardian de título “Quem precisa de críticos de cinema quando os estúdios podem ter certeza de que os influenciadores elogiarão seus filmes?”
A posição defendida por Lazic é cristaliza e dialoga, em grande medida, com o comentário de Brandon Taylor sobre a “democratização da critica”. Contudo, ao contrário de Taylor, Lazic não vê essa mudança com bons olhos:
Se a internet abriu caminho para a desvalorização do cinema via plataformas de streaming, também fez o mesmo para a crítica cinematográfica. O efeito democratizador é inegável, mas também é inegável o barateamento, literal e figurativamente, do trabalho crítico. Com muito mais pessoas escrevendo sobre cinema online, os pagamentos para críticas caíram para níveis chocantemente baixos, e a experiência supostamente exigida dos críticos de cinema foi esquecida – o conhecimento da história do cinema e boas habilidades de redação são cada vez menos valorizados.
Efetivamente, com a desvalorização do trabalho do crítico - tal qual com o fim de todo o sistema que mantinha essa profissão existindo, i. e. o jornalismo como o conhecíamos até os primeiros anos do século XXI -, os estúdios de cinema passaram a priorizar os influencers em suas pré-estreias e cabines de “impressa”.
Assim, se antes o primeiro contato com o filme tinha um caráter técnico, talvez pensando na obra em relações mais complexas de arte, história e política, agora os estúdios tem reservado este espaço da pré-estreia para influencers totalmente parciais (seja por acordos comerciais ou por serem já grandes fãs e divulgadores do “produto-filme”) no intuito de alavancar o marketing do filme com os seguidores.
Na divulgação de Barbie (coincidentemente ou não um filme da A24), isso não seria diferente:
O fato de o público nesta exibição consistir principalmente de influenciadores digitais foi outra estratégia de marketing flagrante, que não teria sido tão ofensiva se não fosse pelo fato de que muitos críticos de cinema não puderam ver o filme antes de seu lançamento. O fenômeno também ocorreu em outras cidades. Alguns dias antes do lançamento do filme, os críticos parisienses ficaram perplexos ao ver alguns colegas compartilhando no Twitter fotos tiradas da tela do filme exibido no cinema, depois de serem informados de que não haveria exibições antecipadas para a imprensa.
Este seria o fim da crítica?
Bem, de alguma maneira, sim.
Tal qual o crítico de rodapé (crítico geralmente de caráter humanista, e elistista que, com práticas personalistas, comandavam primeiros os rodapés dos grandes jornais do século XX e posteriormente dos seus Cadernos Culturais) teve sua autoridade abalada com a chegada da crítica acadêmica na década de 1960, este novo modelo de interação artística e cultural que parece se fortalecer a cada dia no século das collabs tem trazido problemas para o atual “crítico de roda-aba” (versão moderna do crítico de rodapé como tentei descrevê-lo em um ensaio anterior)
Por certo, é com nostalgia que Lazic se recorda de tempos aureos da crítica: “Seja fato ou mito, costumávamos acreditar que os críticos poderiam erguer ou demolir um filme”, diz a autora antes de citar casos onde a crítica, em sua opinião, contribuiu para resgatar clássicos, dar valor a cineastas hoje consagrados ou alavancar filmes. O que não faz Lazic em seu comentário, no entanto, é nos dar exemplos do que também estava previsto nesse sistema de crítica mesmo que a própria o mencione: o poder de destruir filmes (ou obras artísticas em geral, se pensamos no sentido lato do ato crítico) e carreiras.
Sim, a situação da crítica neste momento está estranha. Mas também foi estranho que, em determinado momento da nossa vida cultural e artística, o crítico, autoridade máxima sobre os sabores da vida, tivesse, desde suas páginas dos maiores cadernos culturais do país, tanto poder no gosto cultural nacional.
Se Lazic - ao citar Paul Schrader - sente saudades de um período em que crítica de cinema florescera porque “o público queria filmes melhores”, podemos muito bem compreender, nas entrelinhas de sua fala, que o público a que ela se refere não é aquele lotava as salas de cinemas da época assim como não é o público que hoje lota as sessões de Barbie. Pelo contrário, tal público seria formado por críticos especializado que outrora tinham o privilégio de dialogar diretamente com os estúdios, diretores, atores e outros profissionais do ramo artítisco e que escolhiam não dar ouvido ao que pensava as massas.
Em outras palavas, o que a gatekeeper Lazic parece sentir realmente falta é do poder, enquanto crítica, de influenciar diretores, atores, estudios e principalmente o gosto popular.
E é precisamente por esse motivo que hoje “A Crítica está suspensa”. Ao menos é o que argumenta Jerry Saltz, crítico de arte e ganhador do prêmio Pulitzer, no podcast The Baer Faxt Podcast ao comentar sobre o atual estado da crítica artística e cultural na contemporaneidade.
Contudo, guardemos este e outros problemas do século das collabs para um novo dia.
Por ora, economizemos alguns is.
Até lá, um forte abraço,
A prática do gatekeeping (“guardar os portões”) se dá quando um sujeito transforma sua paixão ou conhecimento sobre um determinado assunto em uma ferramenta feia de auto-inflação. Em outras palavras, o gakekeeper é o sujeito que, ao avistar um proto-desafeto usando uma camisa da banda “que só ele gosta” começa um longo interrogatório com o sujeito para provar que o mesmo não é digno de comprar aquela peça vendida aos montes na C&A.