I
É noite. Alimentado, asseado e algo fatigado pelo dia de trabalho constituído em ler e fichar o admirável Mito y Archivo: una teoría de la narrativa latinoamericana (2000) do crítico e professor cubano Roberto González Echevarría (voltemos, logo mais, sobre esse assunto), me distancio do mundo acadêmico de críticos e livros para me engendrar em planos de como aproveitar o pouco tempo que me resta de uma quarta-feira monótona de uma forma um pouco mais descontraída.
Abro então o catálogo da Netflix e navego por breves minutos pelas infinitas produções até que me deparo com a quarta temporada de Hip-Hop Evolution (2016 - ) e já no primeiro episódio me sinto fisgasdo.
Produzida pelos diretores Darby Wheele e Rodrigo Bascuñán, e apresentada pelo rapper Shadrach “Shad” Kabango, a série documental tem como foco central, como seu próprio título sugere, a “evolução” histórica do hip-hop enquanto gênero musical e fenômeno cultural. Dessa forma, vemos ao longo das suas temporadas, os deslindes de uma complexa história que torna o som de um grupo particular de nova-iorquinos em um dos maiores gêneros musicais de todos os tempos: desde a sua genealogia nos guetos nova iorquinos dos anos 1970; os estigmas sociais do gangsta rap em princípios dos anos 1990; a fatal rivalidade entre as costas Leste e Oeste; o surgimento do Sul na cena; e, por fim, a ascensão meteórica do rap a partir do fim dos anos de 1990 e início dos 2000, transformando-se no gênero musical inescapável da indústria musical americana no século XXI.
Apesar do ‘desfecho’ grandiloquente dessa História ao fim da quarta temporada, estampado com o inegável sucesso de rappers bilionários da atualidade, o que mais me parece chamar à atenção nessa “evolução” é a forma como pequenas histórias, ao longo dessa longa e intrincada trajetória, puderam contribuir significativamente para transformar a vida de pessoas e, por sua vez, o modo como nos expressamos culturalmente, ainda que esses atos elementares se dessem quase que por acidentes históricos.
Uma dessas histórias (logo a do primeiro episódio, para ser mais preciso), me leva além dos capítulos que vejo na Netflix. Pauso. Abro abas no celular, ligo o PC e, desvelando relatos, pesquisas e reflexões, me pego investigando a origem de algo ainda mais fascinante do que pude conceber a um primeiro momento. Mas estou me adiantando. Comecemos do começo, em 1986, quando um duo de rap pouco conhecido do Queens chamado The Showboys decidiu samplear o tema de abertura da série policial da década de 1950…
II
“Senhoras e senhores, a história que vocês estão prestes a ver é verdadeira. Os nomes foram alterados para proteger os inocentes” (Dragnet, 1951) diz o narrador de Dragnet, série televisiva sobre casos da polícia de Los Angeles, ao evocar, sobre a dramática música tema - composta por Walter Schumann -, uma percepção de realismo à ficção detetivesca1.
Não nos custa pensar o porquê desta abertura a la noir ter cativado a dupla Orville “Can Can” Hall e Phillip “Phil Dog” Price, adolescentes há época, ao ponto de se inspirarem para fazer a sua storytelling rap, isto é, um rap em forma de narrativa que, assim como outras formas de rap daquele tempo, retratava aspectos de violência presenciados no cotidiano suburbano:
“Quando alguém saía com algo quente, isso o encorajava a fazer algo melhor”, acrescenta Hall, que se apresentou sob o nome de Can Can. "Estávamos pensando: 'Que porra poderíamos encontrar para fazer uma história [usando o rap]?'"
“Eu estava saindo de casa e ouvi Dragnet na TV”, diz Hall sobre o momento eureka por trás do que se tornaria o sucesso duradouro dos Showboys. (Dragnet foi um programa de detetive clássico da década de 1950 – e mais tarde um filme estrelado por Dan Aykroyd e Tom Hanks – com uma música tema distinta.) “Quando eu ouvi Dragnet, eu realmente comecei a mandar o beatbox para “The Show”. Nós entramos no Jeep e Phil começou a batucar no painel, porque ele um tampo oco, e essa parada era insana.”
20 minutos depois, o “Drag Rap” dos Showboys estava pronto (HALL; PRICE apud MEADOWS-INGRAM, 2018).
Ao ser estruturada como se fosse de fato fosse um episódio de Dragnet (mimetizando desde as palavras iniciais da abertura2 até o break comercial) “Drag rap” surpreende - para além da inventiva forma - ao narrar uma disputa de território entre dois líderes de gangues do Queens sob o sample do tema de Dragnet junto a um instrumental contagiante de 8083, fazendo o produto final dessa produção uma música extremamente dançante:
Curiosamente, no entanto, “Drag rap” passou totalmente despercebida na cena nova-iorquina e entrou em certo esquecimento após o seu lançamento... até encontrar no sul estadunidense uma vida nova, inclusive sob um novo nome: “Triggerman”.
Com uma cena emergente em fins dos anos de 1980, o rap de Nova Orleans teve, em seu princípio, uma “evolução natural” de sua sonoridade ao beber, como dirá o apresentador de Hip-Hop Evolution, dos ritmos tradicionais da cidade como o jazz e o ragtime. Um exemplo claro desse fenômeno pode ser visto em músicas como “Buck Jump Time” (1987) de DJ Mannie Fresh e Gregory D. Mas o caminho dessa “evolução” toma uma mudança drástica de percurso com a chegada quase acidental de “Drag Rap” à NOLA.
“Esta batida crucial muda a cidade. Todo mundo está tocando, [...] O que eu não sabia era que esse era o começo do bounce music” (HIP-HOP, 2020), elucida Mannie Fresh, importante DJ e produtor da cena de NOLA, ao falar da disseminação avassaladora de “Triggerman” por toda a cidade. Em consonância com Mannie Fresh, DJ Jimi admite que, enquanto trabalhou na casa de show Big Man Lounge, “nós sempre tivemos esse som em rotação tocando aqui. Eu era o DJ. Realmente, não era nada além de 'Triggerman'. Foi horas e horas desse som em loop” (HIP-HOP, 2020).
“Triggerman” (nome que referencia um dos líderes de gangue na música) se tornara uma coqueluche ao chegar a Nova Orleans e esta sensação logo começou a influir em novas músicas produzidas pelos músicos locais como, por exemplo, “Where Dey At?” de MC T Tucker e Dj Irv em 1991 que, mudando apenas a letra, se utilizava do mesmíssimo instrumental de “Drag Rap”, coisa que também o fez DJ Jimi em 1992 com “Where Dey At?” (sim, além de usar o mesmo loop de Drag Rap a música tinha o nome idêntico de sua predecessora), Dj Jubilee com “Do The Jubilee All” em 1993 e sucessivamente. Todas extremamente populares não apenas em Nova Orleans, mas em todo o Sul estadunidense:
O que nasceria da esquecida produção dos Showboys que, por sua vez, surgira a partir da outdated versão de abertura de uma série de televisão policial, Dragnet, que, por sua vez, (surprise, surprise) surgira de um plágio4, seria muito mais do que apenas uma moda passageira, conformando-se em todo um (sub)gênero musical vivo e influente até os dias de hoje conhecido como bounce music:
DJ Irv "Where Dey At?" foi um sucesso underground que introduziu NOLA ao infeccioso sample de "Triggerman" e a cidade não se cansou disso. Porque, em algum lugar entre o estrondoso 808s e a percussão staccato, a cidade encontrou mais do que um álbum especial. Eles encontraram o bounce music (HIP-HOP, 2020).
Para se ter uma ideia do espantoso raio de influência de “Triggerman”, o WhoSampled, site especializado em catalogar os samples utilizados na indústria musical, conta pelo menos 156 músicas baseadas diretamente na produção, às vezes ipsis litteris5, ao longo destes últimos 30 anos. Isto se não considerarmos todas as músicas inspiradas, baseadas ou remixadas sobre aquela uma faixa feita com um “simples” bassline de 808 e um recorte de um tema de série de TV) ao ponto de Big Freedia, maior representante do gênero na atualidade, ser taxativo ao dizer que “Se tem a batida do Triggerman, é Bounce!” (FREEDIA apud MEADOWS-INGRAM, 2018).
Qual o exercício de reflexão histórica gostaria que exercitemos aqui, leitor? Sei que o trabalho de se indagar sobre os porquês dos fenômenos históricos pode ser um trabalho ingrato: “Por que Dragnet inspirou os The Showboys?” “Por que ‘Drag Rap’ e não outra música teve tanto impacto sobre aquela sociedade?”, “Por que The Showboys não se inspiraram em outra vinheta musical?”, “Por que, se a música é tão envolvente, a mesma não vingou desde o princípio, ainda no Queens? E o que teria acontecido nesse caso?” Contudo, em quê contribuímos à História ao considerarmos o que poderia ter acontecido?
Acredito que me mais interessante seria se nos perguntássemos sobre o “Como?” dessa história. E uma resposta (sempre parcial, como toda História, mas nem por isso menos instigante) para essa pergunta é “Através do artifício de samplear”.
III
Com o desenvolvimento da tecnologia na indústria musical na segunda metade do século XX, o sampleador. i.e., um aparelho que retira de um arquivo de áudio uma pequena amostra (sample em inglês) para então manipulá-la e transformá-la - alterando o tom, cortando-o em pedaços e remontando-a e repetindo-a em um loop,- em algo novo, se tornou mais acessível e popular entre os produtores musicais a partir da década de 19806. Isso possibilitou que o nascente hip-hop, que já se utilizada de trechos de funk, soul ou jazz (nos quais há uma base de percussão chamada break) em apresentações ao vivo de DJs, se libertarsse de sua exclusivamente performática e se tornar de fato o gênero musical como hoje o conhecemos. Assim, não somente o bounce, mas o rap em sua totalidade é devedor desta técnica como explica Nate Patrin em seu livro Bring That Beat Back: How Sampling Built Hip-Hop (2020) em que advoga pela revolução que a técnica causou na música ao criar uma forma reconhecer, compreender, renovar e transformar uma linguagem coletiva da História musical ao subtrair um pequeno fragmento sonoro, de memória, do espaço e tempo e recontextualizá-lo e reinterpretá-lo, concebendo-o em novas sonoridades, novas memórias:
Isso é o que o sampling pode trazer à música: uma narrativa subterrânea de gêneros e gerações que atravessam o tempo, ideias e interpretações musicais refratando umas às outras, tudo a serviço de uma forma de arte referencial que você realmente não precisa entender a referência para desfrutar (PATRIN, 2020, p. 259).
Me parece precioso pensar como uma ferramenta e técnica supostamente simples pôde de igual maneira transformar a expressão musical de uma sociedade a partir de um cotidiano e ordinário elemento da cultura popular americana como também mudar todo o curso da história da música. Mais precioso ainda é pensar que, ao fim dos anos de 1990, já passado o frisson da era de ouro do sampling no rap e chegada a maturidade desse oficio, a cultura do sampling se tornou mais autoconsciente de si para seguir lembrando, redescobrindo e renovando essa mesma história musical:
É sobre onde a cultura sample realmente começou a se tornar autoconsciente: não apenas como parte integrante da produção de hip-hop, mas como um baluarte contra o esquecimento e um exercício de descoberta (ou redescoberta, por assim dizer). Enquanto alguns ícones do hip-hop estavam a caminho de se tornarem magnatas da mídia no final dos anos 90, outro segmento de artistas pretendia se tornar um tipo diferente de formador de opinião: o curador, o arquivista, o antiquário (PATRIN, 2020, p. 193).
Um fenômeno muito parecido aconteceu na literatura latino-americana como um Roberto González bem observou e expôs com brilhantismo o seu conceito de Arquivo livro em seu Mito y Archivo - tenha sido González Echeverría a qual me referi no começo desse texto. Outro intelectual a falar do assunto fora Ángel Rama com sua Transculturación narrativa en América Latina (2008) ao dizer que “as culturas são invenções seculares e massivas que fazem do escritor um produtor que trabalha com as obras de inúmeros homens. Um compilador, com diria Roa Bastos”. (RAMA, 2008, p. RAMA, 2008, p. 24), embora, para efeitos práticos, deixemos a reflexão sobre o trabalho desses pensadores para outro momento. Por hora, recordo metaforicamente das palavras do escritor argentino Juan José Saer quando afirmou que "Sempre dizem que é muito difícil transformar a sociedade, e eu sustento que mudando dois ou três valores transforma-se a sociedade" (SAER, 2005, p. 172) para dizer: se se muda dois ou três aspectos do ofício de um artista você pode mudar toda uma forma de arte.
PARA SE APROFUNDAR:
“Na batida do bounce”. Primeiro episódio da quarta temporada da série Hip-Hop Evolution. Disponível na Netflix.
“N.E.R.D.'s hit song ‘Lemon’ owes a lot to New Orleans bounce” (2018), episódio da série Earworm (em inglês) do canal Vox. Disponível no Youtube;
“The Evolution of Bounce, From ‘Triggaman’ to ‘Nice for What’" (2018), video produzido pela Complex News (em inglês). Disponível no Youtube;
“The Showboys: O som esquecido de Nova York que mudou o rep do Sul para sempre” (2018) texto de Benjamin Meadows-Ingram (traduzido para o português), originalmente saído na RedBull Academy. Disponível em Portal do Rep;
Bring That Beat Back: How Sampling Built Hip-Hop (2020), livro de Nate Patrin (em inglês). Você pode conferir uma prévia do livro no Kindle.
“Quando solicitado a criação de uma música tema para um novo programa de rádio da polícia chamado Dragnet, Schumann escreveu a famosa abertura de quatro notas, uma frase musical que hoje é uma das mais reconhecidas em todo o mundo. O tema foi usado no programa de televisão de 1951 Dragnet, na versão para tela de 1954, e posteriormente em séries de TV nos anos 1960 e em 2003. Schumann ganhou um prêmio Emmy por seu tema Dragnet, o primeiro concedido na televisão a um compositor” (HISCHAK, 2015, p. 604).
“The rhymes you're about to hear are true/
MC's names have been changed to protect the innocent”
“As rimas que você está prestes a ouvir são verdadeiras/
os nomes dos MCs foram alterados para proteger os inocentes” (THE SHOWBOYS, 1986).
Nome de uma série de linhas de baixo e percussão em referência ao sintetizador Roland TR-808 Rhythm Composer bastante utilizado na década de 1980.
“O célebre compositor de cinema Miklós Rózsa processou Schumann, alegando que ele mesmo havia usado as mesmas quatro notas em sua partitura para o filme de 1946 The Killers. O processo e o contraprocesso de Schummann receberam muita publicidade e os musicólogos apontaram que as mesmas quatro notas podem ser encontradas em várias peças de música clássica. O processo foi resolvido fora do tribunal com ambas as partes recebendo royalties do tema Dragnet” (HISCHAK, 2015, p. 604). Ironicamente, The Showboys, que samplearam o tema e Dragnet, reclamam da forma como, ao longo dos anos, os royalties e as vendas de “Drag rap” se tornaram brumosos na indústria musical: “‘É uma bênção saber que contribuímos para o hip-hop nesse nível’, continua ele. ‘[Mas] quantos discos Triggerman realmente vendeu? Quantas pessoas realmente samplearam Triggerman? Todo mundo sabe disso, mas nós simplesmente não sabemos. Mesmo apenas para o nosso legado, acho que seria algo fenomenal saber.'” (HALL apud MEADOWS-INGRAM, 2018).
Sobre a similitude escrachada de “Do The Jubilee” com “Where Dey At?”, Mannie Fresh dirá que: “DJ Jubilee saiu com essa. Mesma música. Idêntica. [risos] O que é legal no bounce. Se você não entende, você fica tipo, ‘Bem, por que tudo tem a mesma maldita batida? Essa música não tocou?' E, você sabe, mas é assim que é. Esta cidade apenas pega algo e vai nessa” (HIP-HOP, 2020).