Desde o “PRELÚDIO”, Laura Redfern Navarro estabelece com muita clareza ao leitor ou leitora dO corpo de Laura (2023) os signos que tornam a plaquete, de poema a poema, numa narrativa sobre esse eu-lírico que se desloca (“caminha”) e se entende (“deslumbrada”) enquanto corpo (“carrega […] entre as pernas”). Ou, como nos diz Laura (o eu-lírico), entre:
o [nojo] e o [gozo]
Assim, no Corpo de Laura, tanto quanto no processo do desenvolvimento de um corpo concreto, material, tátil, que nasce e se entende no mundo, o “DESLOCAMENTO” vem primeiro que o “MANIFESTO”1.
E nesse deslocamento, é essencial para Laura se entender como corpo caminhante. Não peripatético (ou pelo menos não ainda), dialógico, mas aliviado de não encontrar bordas mundanas, após ser espremida num útero-coração-paraíso divino/materno:
sair do [paraíso] é para quem realmente não tem medo de deus;
[…]
((coração de mãe não tem limite!))
e, mesmo se coubesse,
será que daria para saber
quantos olhos
espremidos
estão ali tentando:
se desmanchar o corpo
Aliviada (condição tão física, corpórea) de sair de sua condição inefável, ao descer na estação Liberdade, esse corpo passa a explorar(se) (n)o mundo.
Da luz, auto-consciência, “MANIFESTO”.
Laura, que sai do útero-coração-paraíso vê no mundo o que lhe havia sido privado durante seu estado divino, imaterial, etéreo: o delírio.
Delírio esse único e apenas possível através do corpo, das funções nervosas e indissociável de qualquer corte epistemológico, divino ou platônico.
O creacionista Vicente Huidobro - respeitador, em partes, da natureza já que delas viemos e somos, mas por meio dela criamos uma realidade própria, humana2 - em seu Minifiesto de manifiestos afirmou sobre o delirio poético:
O automatismo psíquico puro - isto é, a espontaneidade completa - não existe. Bem, todo movimento, como diz a ciência, é uma transformação de um movimento anterior.
No delírio — que é muito mais belo que o devaneio — a razão continua sendo controlada (este é um fato comprovado pela ciência), controle que não existe no sono natural.
Esse controle não é o da razão fria de que fala Platão, mas o de uma razão elevada à mesma altura, colocada no mesmo plano que a imaginação.
O delírio é uma espécie de convergência intensiva de todo o nosso mecanismo intelectual para um desejo sobre-humano, para um impulso conquistador do infinito.
A ilusão é irreal, absolutamente irreal na vida. Mas é uma realidade para quem o produz e para quem consegue alcançá-lo, absorver a sua atmosfera. Ou seja, é uma realidade em um plano diferente do comum. É uma realidade nesse plano extra habitual que chamamos de Arte.
O delírio é a capacidade que algumas pessoas têm de se transportar naturalmente, de ter um mecanismo cerebral tão sensível que os acontecimentos do mundo exterior podem colocá-las em tal estado de febre e alta frequência mnemônica.
Esse eu-lírico errante, passa, então a estimular seu corpo (e, simultaneamente, ser estimulada) com
[bugigangas] [frutas] [sujeira] em toda parte!
& gente, (gente), pois quanta Gente!
E aqui que me valho do velho direito de ser Anônima neste meu Corpo-poeta;
E desses estímulos de interações e farras, o eu-lírico se descobre num carnaval: a festa da carne (corpo), onde tudo e todos se encontram, pobres, ricos, altos e baixos, aristotélicos e platônicos, na utopia do anonimato.
Mas até quando pode uma pessoa, nascida, tátil, viver sem nome, identidade? Para além das fronteiras do corpo, o que há nas fronteiras do eu? Sou eu corpo? Apenas corpo? Sou eu cidade que me estimula? Sou eu nome?
Em “ANÔNIMA”, assaltam o eu-lírico e levam o seu nome. Mas pode um nome dado por Outro, no útero-coração-paraíso, ser realmente próprio?
não houve crime nenhum ali pois a Moça
me /agradeceu/ ao final
e para sempre
Essa concepção, de se ver na realidade-cidade, dá prosseguimento ao delírio poético. Em “LAURA VAI À 25 DE MARÇO”, o eu-lírico nota que um nome não é apenas um nome:
me roubaram de mim
me roubaram o corpo
um manequim idêntico a mim: uma falsificação no lugar
do meu corpo (…)
quem sou eu quando estou de frente para o espelho da olha? (…)
a cidade me perturba
Nessa perturbação, qual é a fronteira entre o [nojo] e o [gozo]?
A “FRONTEIRA”, é o Outro que, pela primeira vez, aparece em O corpo de Laura não como algo imaterial, mas enunciado como físico, corpóreo, nutrido de Desejo, gozo e nojo:
não conheço ninguém ali conheço o Coração da cidade você me ocupa
mas Você (agora me dou conta) //estremeco//
pelas bordas
ultrapassadas
[Público-Privado]
Ao começar a se entender, o eu-lírico reconhece o Outro-corpo, que, tal como a voz que acompanhamos, também fala.
Dos corpos, se forma diálogo, “BURBURINHO”, confissões (nunca desligadas do corpo que delira):
hoje na 25 comprei um vibrador só eu e a vendedora sabemos
eu a vendedora e os outros todos
que estavam na loja naquela hora sabemos
O diálogo de corpos prossegue como um oxímoron: num TEATRO MUNICIPAL, os assistimos no lugar mais público possível em espetáculo de diálogo intimo e desejoso de tatearem as fronteiras um do outro:
o exercício é muito simples: escolher [lugares] onde podemos cruzar o Desejo & os nossos Ácaros em tanto barulho posso atuar gosto dessa intimidade (...) precisa ser sujo vulgar e de mau gosto aparte: O [palco] é o lugar para [um lugar] que fique ali [para te chupar]; precisa ser um /espetáculo/ Anônimo e Modernista [para te chupar]
O diálogo dos corpos, líricos, prossegue por “BECOS”, vielas, paredes sujas, gozadas. Entre [nojo] E [gozo], em mistura sem medidas, até formar toda uma “CARTOGRAFIA” delirante.
Nesse mapa, então, longe do útero-coração-paraíso, as fronteiras dos corpos-lugares-diálogos líricos se mesclam, intrinsecamente, na próprio tecido da metrópole:
"os mapas são todos inexatos;" (…)
é o Corpo de Laura
que /demarca/
esta metrópole
Esse corpo, agora consciente, quer escrever seu desejo, seu delírio. Além das fronteiras do EU-lírico e do Outro-corpo, há a leitura de outros Outros (que incluem, também e, sobretudo, o próprio Eu futuro).
Enquanto toma “Anotações” para um diálogo futuro, Laura estabelece, por ora, em seu “EPÍLOGO”, (re)conhecimentos que, como sabe, ou espera, ficam, no corpo, no diálogo:
conheço são paulo como a palma da minha mão (…)
sei também de cor todas as estações (de rádio] que estão ligadas ao
mesmo
tempo nesse trajeto que vai da cidade até a cidade nunca acaba é um pouco de onde pertenço:
reconheço o momento em que as coisas se misturam
não reconheço a [mistura]
um zumbido
pertinente
Reconhecer E não reconhecer. [Privado-Público]. Compaixão (eleos) E temor (phobos). O [nojo] E o [gozo].
Na imensidão sem limites do mar, a voz e seus limites uma vez disse:
O desconhecido é uma abstração; o conhecido, um deserto; mas o semiconhecido, o vislumbrado, é o lugar perfeito para ondular o desejo e a alucinação.
Cá estamos, ao fim dessa narrativa, com O corpo de Laura.
“O homem começa vendo, depois ouve, depois fala e por fim pensa”, diz Vicente Huidobro.
“O poeta é um pequeno Deus”, afirma Huidobro em sua “Arte Poética”. Não por ser, ele próprio, divino. Ao contrário, o poeta é um humano de carne e osso que, desde suas faculdades mentais (cerebrais), cria, como um pequeno Deus (por meio da sua linguagem poética, humana), algo igualmente humano. “O homem, neste caso, criou algo, sem imitar a natureza em suas aparências, mas obedecendo a suas leis internas. [Contudo,] E é curioso ver como o homem seguiu a mesma ordem da Natureza nas suas criações, não só no mecanismo construtivo como também no cronológico”, afirma também Huidobro. Perceba ao longo dessa leitura como o delírio poético produz [nojo] e [gozo] autêntico quando se dá não por um contato com o natural ou inefável, mas com o concreto (literal e metafórico) da metrópole e o que o ser humano nele cria (o lixo, o manequim, o falo de borracha, o sexo-encenação, o mapa).