O QUE FAZER QUANDO SE PREFERE NÃO FAZER?
DE AUTORES, TEXTOS E LEITORES [ENSAIO]
I
É segunda.
É cedo.
Inapropiadamente cedo, diria, para - depois de uma viagem de mais de 6 horas, com percalços e exaltação, e uma noite de pouco sono e sonhos - estar de pé procurando mala, comprando remédio ou pegando fila no banco no centro de Viçosa.
Fazia tempo que não vinha aqui (aqui-Viçosa, aqui-ensaio). Há um tempo adiei estes afazeres banais tanto quanto o encontro com meus cachorros, a visita ao médico e um fardo (literal, quilos e quilos de livros) pesado demais que preciso tirar dessa cidade.
De fato, tenho adiado diversas coisas nos últimos 2 ou 3 meses. Adiei, por exemplo, esse mesmo ensaio por semanas. De pequenas notas, escritas em transportes, até a redação - feita numa fila - das palavras que você lê agora, se deram meses, anos. Adiaria ainda mais não fosse o compromisso que firmei com vocês, leitoras e leitores.
Não me entenda a mal. Escrever estes fragmentos de experiências, desde um celular com acesso precário a internet, não é um fardo (metafórico), um desprazer. Pelo contrário. Mas como todos, de quando em quando, também sou tomado por uma vontade batlebiana de não ceder à vontade alguma.
Na farmácia, o prompter chama um novo número.
A fila anda.
II
O rascunho original do Medium se perdeu. Mas o original-original, gravado na minha memória, ainda se encontra aqui, como um lembrete bartlebiano de ideias que nunca vieram a público.
O ano era 2019. A data exata será difícil de precisar. Mas a referência temporal existe: a última e mal feita temporada de Game of Thrones.
Antes do Season Finale e das pessoas desistirem dessa franquia para sempre (ou até A Casa do Dragão que, convenhamos, ninguém botava fé), lembro de me deparar com um meme no twitter que dizia algo como “esses produtores de merda destruíram a minha série”.
“A minha série”.
Essa expressão me tocou de um jeito único.
Tão único que abri o Medium, escrevi um título, coloquei uma imagem e matutei por um longo tempo antes de perder o timing e o tesão de escrever esse ensaio.
A premissa me parecia razoável: o espectador de Game of Thrones, naquele momento, realmente acreditava que a construção da série era dele e não de um diálogo que partia de uma (ou mais) pessoa(s) criativa(s) que conduzem aquela obra de um ponto a outro.
“Essa era uma relação exclusiva do “entretenimento’ ou também afetava a ‘arte’? Teria a estética da recepção chegado a sua vulgata? Essa relação mimada do público era nova?”, foram algumas das perguntas que passaram pela minha mente e nunca nem mesmo chegaram a ser rascunhadas.
O que eu me recordo, de fato, e que essa relação um tanto quanto tóxica entre público e autor(es), como eu gostaria de ter apontado no alto do hype de 2019, encontrava raízes mais antigas. Sir Arthur Conan Doyle no final do século XIX, afinal, viveu o mesmíssimo problema.
Doyle, que na virada do século gostaria de se dedicar a outras paradas literárias, como o romance histórico, decidiu por matar Sherlock Holmes em “O problema final”, de 1893, e seguir com sua vida e carreira.
O público do detetive não gostou nada do desfecho e desejou o próprio funesto fim de Doyle por isso, adiantando-se ao lema pós-estruturalista “o autor (deveria) está(r) morto”:
Depois que "The Final Problem" foi impresso e vendido a um público desavisado, Conan Doyle ficou chocado com a veemência da reação do público, que incluía ameaças e cartas abusivas. "Seu bruto!" uma carta começou. De acordo com uma história possivelmente apócrifa, uma senhora o atacou com seu guarda-chuva quando o encontrou na rua; outro fez piquete em sua casa em protesto. As pessoas usavam braçadeiras pretas como se uma verdadeira celebridade tivesse morrido. Aparentemente, Conan Doyle foi o único que levou seu famoso detetive menos do que a sério, e ele tinha seus motivos.
Poucos sabiam há época mas Conan Doyle passava, no período da publicação da morte de Holmes, por um processo delicado de luto e dor. Seu pai havia morrido e sua esposa havia sido diagnosticada com tuberculose.
"Fui muito acusado de matar [Holmes]", disse Conan Doyle em um discurso, "mas sustento que não foi assassinato, mas homicídio justificável em legítima defesa, pois, se eu não o tivesse matado, ele certamente teria me matado."
Contudo, mesmo se soubessem das condições precárias de vida do autor, imagino que o público não teria se importado tanto assim1 (hoje, esses “detalhes” apenas enriquecem o lore do personagem).
O importante, ao fim e ao cabo, é que Conan Doyle desmatou Sherlock Holmes em 1901 e seguiu suas aventuras, ou melhor, as aventuras do público.
Ao contrário de Sir Arthur Conan Doyle, preferi não fazer esse ensaio, em 2019. E sigo não o fazendo hoje, a bem da verdade.
“Essa era uma relação exclusiva do “entretenimento’ ou também afetava a ‘arte’? Teria a estética da recepção chegado a sua vulgata? Essa relação mimada do público era nova?” não são indagações que pretendo responder aqui.
Ao modo de Levrero, em seu Romance Luminoso, me proponho outras perguntas: por que não responder a tais perguntas? Por que prefiro não fazer?
Chamam mais um número.
Caminho dois passos.
III
Me encontro dentro de um ônibus a caminho do Rio de Janeiro.
Com o dito fardo na mala e a cabeça cheia de burocracia, tento ler Sobre os livros e livreiros da Antiguidade (cortesia do grande Alfonso Reyes) no ônibus que balança pra cima e pra baixo, para um lado e para o outro, em direção a quente cidade carioca.
Mesmo que o livro de Reyes seja curto (não mais que 70 páginas), terminá-lo nas condições precárias dessa viagem de 6 horas se torna uma meta de leitura um tanto quanto inalcançável. E pra ser sincero, ultimamente, sinto que a minha vida tem sido uma grande viagem de 6 horas que parece nunca acabar, pois, no contexto atual, eu nunca li menos - em comparação aos últimos 10 ou 15 anos -desde que ingressei na Letras.
Ao contrário da mala que carrego, cheia de livros lidos, a minha atual página de “desafio de leitura anual", do Goodreads, míngua com 4 títulos: todos curtos, de 50 a 120 páginas, todos lidos especificamente para trabalho.
O próprio site incentiva essa competitividade não dita todos os anos, estimulando que cada pessoa estabeleça metas de leituras e, logo daqui, vejo a página do meu grande amigo Fernando com várias atualizações e leituras recentes.
Mas pela primeira vez na vida, a sensação de não ler, por prazer, tem me dado igual fruição.
Fruição de não ser um leitor que toma pra si uma obra como sua, tal como fizeram os fãs de Sherlock Holmes ou fãs das crônicas de gelo e fogo.
Fruição esta, paradoxalmente compartilhada por alguns autores, tão caros de seres os únicos donos de suas próprias obras.
No final do ano passado, outro ensaio que só ganhou um título e nada mais pretendia fazer uma estranha conexão entre o poeta Rainer Maria Rilke e o Youtuber Monark.
A palavra chave do título era “senso de realidade” que vinha, suponho, do estranho conselho de Rilke para seu neófito interlocutor, em Cartas para um jovem poeta, em nunca considerar a opinião do público sobre a sua obra: “Obras de arte são de uma solidão infinita, e nada pode passar tão longe de alcançá-las quanto a crítica”. Posição estranhamente semelhante a de Monark quando, após ser cancelado e processado judicialmente por apoiar a criação de um partido nazista no Brasil, disse que não se importava com a reação das pessoas com as polêmicas e seguiria fazendo o seu trabalho. Falava porque tinha liberdade de expressão e essa, acima de qualquer outra, é a régua do mundo, segundo o próprio, e se alguns se incomodavam com isso, ele não deveria ser punido por isso.
Por mais duvidosa que essa associação pareça ser, Monark-Rilke, ambos se baseiam no mesmo antigo (arcaico, poderíamos dizer) princípio: a autonomia da linguagem.
Nessas realidades paralelas à materialidade e a interação social, a forma (poética) e a expressão (verbal) da linguagem não devem não podem ser julgadas, punidas ou (des)classificadas. O compromisso primeiro e último do autor (poeta ou comunicador) é com a própria linguagem (em sua forma ou conteúdo) que nada tem a ver com o público.
Por aquele momento em que primeiro me propus a escrever o ensaio (29 de dezembro de 2022), a leitura de Rilke e o vídeo de Monark me proporcionaram perguntas que, conjuntamente, se fazem apenas uma: se você opina para si e apenas para si, então porque opinar, gravar e subir numa plataforma pública? Se a opinião do público sobre sua poesia é irrelevante, então por que escrever poemas, procurar uma editora e publicar vários números de sua obra se você não se importa se qualquer pessoa, em qualquer momento tirará aquele volume de uma prateleira? Por que apenas não realizar exercícios poéticos mentais e tanto quanto a memória os apaguem, ficar apenas você com a satisfação de sua beleza?
Por que fazer, afinal?
Meses depois da concepção inicial desse ensaio nunca publicado (e que nunca o será), no momento em que mais prazer eu tiro em não fazer as coisas, mais essa pergunta me soa estranha.
Mas, lendo Reyes, há de se perceber que a escusa de um não é a mesma do outro. Nem hoje, nem amanhã, nem ontem:
Marcial, Juvenal e Plinio, todos concordam que "escrever dá fama e nada mais". Tácito nem mesmo admite isso: "Versificar não dá honra nem dinheiro", diz ele. "Mesmo a fama que os poetas almejam como o único prêmio, em troca de suas lutas e esforços, sorri menos para eles do que para os oradores públicos. "
Realidades paralelas. E nelas, o poeta, no alto do seu castelo de marfim, sempre sai perdendo (ou não, afinal, “seu compromisso é com a linguagem”, se justificam os amargurados) na materialidade que prefere se alienar.
Marcial, o poeta romano considerado o best-seller de seu tempo, precisou pedir dinheiro a Plínio para custear o seu retorno definitivo à Espanha2.
Já oradores como Lúcio Lúculo, consul e orador romano - lembrado na posteridade como um glutão -, foram possuidores de esplêndidas coleções “de livros escolhidos que abria[m], de bom gosto, aos eruditos".
Pode Monark, comunicador milionário (mesmo cancelado e não sendo o capitalista que acha ser), possuir uma vasta biblioteca em sua casa? Poderia Rilke, o mesmo poeta que se queixa com Franz Xaver Kappus de não ter recursos de obséquiá-lo seus livros3, se permitir luxos não poéticos?
Perguntas que não terão prosseguimento investigativo. Teriam, se eu preferisse não fazer o ensaio planejado.
Desligo o app kindle dando cabo a leitura. A bateria já entra em modo econômico e ainda me faltam umas duas horas para o estado fluminense.
Prefiro não fazer.
Prefiro dormir.
IV
Há muito já apitou o trem da meia-noite que marca, sonoramente, sua passagem por Congonhas.
Do meu quarto, termino uma aula, reviso um material que servirá de prova, revejo meu cronograma onde o fardo, agora, é apenas mental (aceitaram meus prazos? minhas solicitações?). Na dinâmica kafkiana das abas abertas no Firefox, decido, antes que o dia nasça, tornar a abrir a aba de rascunhos de textos perdidos na pilha de demandas da vida.
Lá, me deparo com mais títulos sem textos como “A CRÍTICA DA AUTOCRÍTICA”, “QUANDO AS DIVINDADES ESTREMECEM” e “COMO MUDAR A HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA" “O LATINO-AMERICANISMO E A CRITICA LITERÁRIA NO SÉCULO XX". Neles, vejo resenhas não terminadas. Vejo notas preliminares de ensaios sobre música, cultura, literatura, risadas em transportes públicos, países sem mares, angústias futebolísticas. Vejo partes de narrativas nunca publicadas (como exercícios rilkeanos).
Que provavelmente seguirão nunca publicadas.
A semente da dúvida desse encerramento e entrega ao público, de fato, me retorna a aba da aula de introdução ao conto que se dará ainda hoje, na qual incluo a reflexão de Ricardo Piglia quando o escritor anuncia em suas “novas teses sobre o conto” que:
Borges construiu um dos melhores textos sobre o caráter imperceptível da noção inevitável de limite, e esse é o título de uma página escrita em 1949, escondida em O fazedor e atribuída ao obscuro e lúcido escritor uruguaio Julio Platero Haedo. Diz assim:
"Há um verso de Verlaine que não tornarei a lembrar. Há uma rua próxima que está vedada a meus passos. Há um espelho que me viu pela última vez. Há uma porta que fechei até o fim do mundo. Entre os livros de minha biblioteca (cá os vejo) há algum que já não abrirei".
Baseado no oximoro e no desdobramento, Borges narra o fim como se o vivesse no presente: está além e é remoto, mas já está aqui, inesquecível, despercebido.
Definitivamente não reli o conjunto completo da miscelânea que é Formas Breves para preparar a aula que logo darei e não lembro se li o texto completo de Borges citado acima alguma vez na minha. Mas, desse palimpsesto de fragmentos de fragmentos, penso refazer meus sentimentos.
“Preferir não fazer” significava, como mal compreendia, “preferir não terminar”.
Mas a própria essência desse conjunto heterogêneo de textos, que encaro em minha aba de rascunhos, a bem da verdade, nunca pediu um término, uma conclusão.
Entendo agora a sua verdadeira ontologia, que se descortina diante dos meus olhos não como futuros ensaios, resenhas e narrativas, mas como (nada meros) exercícios, aforismos, ensaios de ensaios.
Os reconheço, os coleto, os seleciono e os exponho, agora, completos, aos olhos do público.
Aos seus olhos.
Para os julgar, condenar, (des)classificar e o que mais achar.
Fecho as abas.
Preparo um café.
V
É sexta.
É cedo.
Da retangular janela, contemplo o circular sol. Do bolso, sinto a vibração da mensagem esperada.
Antes ler seu conteúdo, encaro por alguns (eternos) segundos esse miniaturalizado muro preto em todo seu poder.
Quando ascendo a tela, leio com atenção:
Assunto: “suas demandas”
Mensagem: “Estamos de recesso.”
“Seguimos vivendo num mundo onde há pessoas dispostas a viver e, assustadoramente, matar pela literatura”, afirmei, há uns meses atrás, no texto CATCH-28: ENTRE A VIDA LITERÁRIA E A MORTE LITERAL.
“Quando Marcial voltou de Roma para sua Espanha natal, após cerca de trinta e quatro anos de constantes triunfos literários, seu amigo Plinio teve que pagar por sua viagem. E disse com resignação que não se importava com o sucesso de seus livros: ‘O que eu ganho com isso? Minhas finanças não aproveitam.’ Por isso, procurou patronos e até se rebaixou a escrever elogios grosseiros ao imperador, que de vez em quando lhe dava uma crosta: ‘Só peço - exclamou - que tenha um cantinho onde possa deitar-me para descansar'" (REYES, 1980), nos conta Reyes.
“Por fim, no que diz respeito a meus livros, adoraria lhe enviar todos os que poderiam trazer alguma alegria para o senhor. Mas sou muito pobre, e meus livros não me pertencem mais, desde que foram publicados. Eu mesmo não posso comprá-los e, como gostaria de fazer com frequência, dá-los para as pessoas que lhes demonstrariam afeição.” (RILKE, 2006)
O recesso foi o não-querer em relação às suas demandas.