Ao menos é o que ele acreditava: “I am a God” lemos no título da terceira faixa de Yeezus (2013), álbum que, como o próprio nome sugere — junção das palavras Kanye e Jesus -, tornava o rapper o próprio avatar do Criador.
Inciting Incident
Esse fato, reafirmado em entrevistas da época (“Quando alguém se aproxima e diz algo como ‘Eu sou um deus’, todo mundo diz: ‘Quem ele pensa que é?’ Acabei de dizer quem pensei que era, um deus. Acabei de te falar!”, diria à BBC) parecia associar duas características bastante conhecidas de Ye até então: a sua fé cristã e o seu narcisismo.
Sobre a primeira, a demonstração mais óbvia até então sem dúvidas era a música “Jesus Walks” lançada já no seu debut como rapper. “Dizem que posso cantar rap sobre tudo menos sobre Jesus / Isso quer dizer armas, sexo, mentiras, clipes / Mas se eu falo sobre Deus meu CD não vai tocar”1, versa Kanye na música que lhe concederia o primeiro Grammy da carreira.
Sobre a segunda característica, o narcisismo, é preciso lembrar que, após recepções mornas (808s & Heartbreak (2008), mesmo sendo unanimemente celebrado hoje em dia, foi um flop na época de lançamento) e uma série de polêmicas (como a famoso, ou infame, episódio com Taylor Swift em 2009) no final dos anos 00, Kanye passou uma temporada no Havaí produzindo um dos melhores álbuns do século XXI segundo a crítica especializada: My Beautiful Dark Twisted Fantasy (2010). MBDTF, com efeito, seria o grande comeback do rapper ao estrelato, deixando o seu já grande ego a ponto de explodir.
Yeezus, nessa toada, não é apenas um álbum de 10 faixas dispersas. Como nos ensina Cole Cuchna em seu podcast “Dissect”, Yeezus nos conta a história de um personagem divino que, cansado de brilhar sozinho, descende a uma profana jornada por um sentido de ser.
“‘Blood On The Leaves’ nos revela que Yeezus, em algum momento, havia se apaixonado. Mas o amor que essa mulher tinha por Yeezus se transformou em um amor pelo ribalta que o seu status de celebridade lhe proporcionava. O fascínio dos holofotes destruiu o relacionamento, deixando uma ferida aberta que Yeezus foi incapaz de curar.”
Ser um deus é uma função solitária, afinal.
No final do álbum, contudo, “Bound 2” deixa transparecer que Yeezus finalmente conhece “Uma boa menina vale mais que mil cadelas”2. Como sabemos, essa garota não seria ninguém menos que a sua futura esposa, Kim Kardashian: socialite, empresária, estilista e, acima de tudo, dona de seu próprio capital cultural. Entre ambas as divindades, o amor prevalece sobre a adoração. E, com a união das deidades, a narrativa do álbum se encerra: “Talvez a gente ainda podia fazê-lo para os degraus da igreja / Mas, primeiro, você tem que lembrar como esquecer /Depois de todos estes longos versos / Estou cansado, cansado, Jesus chorou / Eu sei que você está cansada de amar, de amar / Com ninguém a amar”3.
O paraíso, contudo, não seria tão agradável quanto esse final feliz nos deixou imaginar.
O conflito
A tensa relação entre o anterior status divino de West e a sua vida a dois se mostra logo na capa de seu próximo álbum, The Life of Pablo (2016): de um lado, uma foto de um casamento, do outro, uma mulher seminua exibia a sua bunda para a foto. Na parte inferior da capa, lemos “WHICH / ONE” (“QUAL / DELAS”) repetidas vezes.
Kanye claramente se sentia um homem mudado àquela altura. Entre mais uma de suas demonstrações de auto-amor, em “I love Kanye”, Ye deixava escapar uma inevitável comparação consigo mesmo: “Eu sinto saudades do velho Kanye / O Kanye diretamente de Chicago / O Kanye que mixava as batidas de soul / O Kanye que tinha seus objetivos estabelecidos / Eu odeio o novo Kanye / O Kanye mal-humorado / O Kanye que é sempre rude / O Kanye que surta com os noticiários / Eu sinto falta do doce Kanye / O Kanye que misturava as batidas / Tenho que dizer, naquele tempo / Eu gostaria de conhecer o Kanye”4.
Enquanto isso, o relacionamento com Kim já parecia perder os seus contornos divinos. Em “Saint Pablo”, por exemplo, Ye diria que “Minha esposa disse, eu não posso dizer não para ninguém / E nessa altura vamos os dois morrer falidos / Tenho amigos me pedindo dinheiro sabendo que estou em dívida / E como minha esposa disse, eu ainda não disse não”5. Já em “Highlights”, o passado de Kim é versado com sarcasmo: “Eu aposto que eu e Ray J seríamos amigos / Se nós não amassemos a mesma vadia / Sim, ele pode ter atingido-a primeiro / O único problema é que eu sou rico”6. Por fim, em “No more parties in L.A.”, vemos uma claro e banal conflito de casal sendo exposto: “Um garoto de 8 anos de 38 anos com problemas de negros ricos / Diga à minha esposa que odeio o Rolls, então nunca dirijo”7 (“Muitos consideram as reclamações constantes de Kanye sobre a vida — como não querer dirigir o carro de Kim — estúpidas e, ao lado de seus discursos, parece infantil”, lemos em uma nota na Genius).
O amor dos dois deuses, ao contrário de formar uma única luz de admiração e resplendor, pelo contrário, parece ter causado um efeito negativo em ambos. Isto é, o que os holofotes nos mostra não é um relacionamento extra-terreno, mas uma relação bastante humana, falha, problemática.
Deus, nessa narrativa, volta a ser uma figura etérea, impalpável, distante de seu pouco divino avatar de outrora. Quer dizer, Ye ainda alimenta o seu narcisismo: “Eu sei que sou o mais influente / A capa da TIME foi só uma confirmação / A coisa mais próxima de Einstein dessa geração / Então não se preocupe comigo, estou bem”8, mas ele já não pode ser perfeito como o Deus de “Ultralight Beam”, “Father Stretch My Hands’, Pt. 1” e “Pt. 2): “Pai, essa oração é para todos aqueles que não se sentem bom o bastante. Essa oração é pra todos aqueles que se sentem bagunçados demais. Para todos aqueles que sentem que já disseram, “me desculpe” vezes demais. Você nunca pode ir tão longe que não possa voltar pra casa novamente. Por isso eu preciso… Fé, mais, segurança, guerra”9.
Ye, apesar de sua estatura (medida a própria régua), já não é capaz de se salvar por conta própria. E, com os anos, o rapper desceria cada vez mais de seu pedestal.
“They say you can rap about anything except for Jesus / That means guns, sex, lies, videotape / But if I talk about God my record won’t get played.”
“One good girl (alright) is worth a thousand bitches”.
“Maybe we could still make it to the church steps / But first, you gon’ remember how to forget / After all these long-ass verses / I’m tired, you tired, (uh-huh, honey) Jesus wept / I know you’re tired (tired) of loving, of loving / With nobody to love”.
“I miss the old Kanye, straight from the ‘Go Kanye / Chop up the soul Kanye, set on his goals Kanye / I hate the new Kanye, the bad mood Kanye / The always rude Kanye, spaz in the news Kanye / I miss the sweet Kanye, chop up the beats Kanye / I got to say, at that time, I’d like to meet Kanye”.
“My wife said, I can’t say no to nobody / And at this rate we gon’ both die broke / Got friends that ask me for money knowin’ I’m in debt / And like my wife said, I still didn’t say no”.
“I bet me and Ray J would be friends / If we ain’t love the same bitch / Yeah, he might have hit it first / Only problem is I’m rich”.
“A thirty-eight-year-old eight-year-old with rich nigga problems / Tell my wife that I hate the Rolls so I don’t never drive it”.
“I know I’m the most influential / That TIME cover was just confirmation / This generation’s closest thing to Einstein / So don’t worry about me, I’m fine”, diz em “Saint Pablo”.
“Father, this prayer is for everyone that feels they’re not good enough. This prayer’s for everybody that feels like they’re too messed up. For everyone that feels they’ve said “I’m sorry” too many times. You can never go too far when you can’t come back home again. That’s why I need… Faith, more, safe, war”.