Delírio
Em 10 de dezembro de 1561 o digno senhor Álvaro Solares se surpreendeu ao abrir, durante o seu expediente, uma das cartas mais ousadas que não apenas o funcionário real veria em vida, mas de toda a História.
"Por cierto lo tengo que van pocos reyes al infierno, porque sois pocos; que si muchos fuésedes; ninguno podría ir al cielo, porque creo allá seríades peores que Lucifer”, dizia a epístola dirigida ao Rei Felipe II por um tal Lope de Aguirre, autoproclamado “Príncipe de la Tierra Firme y Perú y Gobernador de Chile” e que ofendia o rei espanhol com todo o seu ser.
Solares, de tanto espanto, não pôde nem terminar a carta. Pôs-se a correr pelos corredores da partição pública, pelas ruas de Madrid e pelas vias de acesso ao castelo ainda que tal urgência não fosse realmente necessária: morto pelas mãos de seus próprios companheiros 2 meses antes que o pobre funcionário pudesse colocar seus olhos naquela diatribe, o delirante Lope de Aguirre fez juz, até o último momento, as palavras de sua virulenta afronta ao escolhido por deus: “yo, rebelde hasta la muerte.”
Inveja
Em agosto de 1846, o escritor Esteban Echeverría via, impotente, as mãos impetuosas do general Rosas moldar as frescas faces de sua nação.
A contragosto de seus ideais, o progresso argentino se dava pela ponta da espada e não pela sua poesia.
Doente e refugiado em terras uruguaias, pôs a criar, na pena de sua ficção, uma associação secreta e clandestina disposta a lutar e morrer pela pátria. A Associação de Maio, que na prática nunca existiu, viria a lembrar os argentinos de seus verdadeiros compromissos e Dogmas.
Em 19 de janeiro de 1851 Echeverría morreria proscrito sem que jamais pusesse voltar a por os pés na pátria ou os braços ao redor de sua filha, Martina.
Enquanto crescia, a jovem argentina seguiria vendo as páginas da História se encherem de Rosas. Os cantos de índios e donzelas da juventude de seu pai não puderam eclipsar as vitórias campais de seu algoz. Em notas de rodapé, contudo, a Associação de Maio segue viva para assombrar o legado do prócer.
Cólera
No dia 4 de julho de 1916 Quindinho não pôde mais suportar a humilhação. Queria vingança. Saiu cedo do expediente. Falou para o capitão que não se sentia bem, o que não era de todo mentira. Passou em casa, pegou a herdada Smith and Wesson, calibre 32, e escreveu o poema "Paz" em referência ao sentimento que sentiria após tirar a vida do assassino de seu pai.
Às 13:30, no Cartório do 2º Ofício da 1ª Vara de Órfãos da então capital da República, morria Euclides da Cunha Filho. Testemunhas disseram que junto aos últimos suspiros do rapaz saia um som seco de sua boca, como se declamasse uma oração.
Desespero
Passou a vida inteira em busca de uma harmonia.
"No leo, apenas escribo", anotou em seu diário José María Arguedas em 23 de julho de 1969.
Como conciliar as memórias da sua infância, imersas no maternal quechua, com a madurez das intrigas literárias, das disputas acadêmicas, da infindável luta pelo alheio, sempre afundada na truculência do espanhol, sua irredutível herança?
"Ya casi no puedo leer; no me es posible escribir sino a saltos, con temor", relata Arguedas em 28 de novembro de 1969.
Como conciliar uma vida fúnebre e uma literatura utópica?
"Ya no voy a sobrevivir al libro", escreve Arguedas antes de se fechar em um dos banheiros da Universidad La Molina e disparar contra a própria cabeça.
Orgulho
Em agosto de 1974 era publicado, em Buenos Aires, o primeiro volume da obra completa de Jorge Luis Borges, volume este dedicado à sua poesia. No prefácio, H. Bustos Domecq, editor da obra, não economizou adjetivos para qualificar a honra "de reunir toda a poesia produzida em vida" do poeta Borges, há décadas aposentado.
Borges, que só morreu em 1986, publicaria ainda em outubro daquele ano de 1974, no quinto volume da Revista Breve, o haiku "Sabedoria zen budista":
Em apenas três linhas uma obra se desfaz inteira.
Vergonha
Pelas ruas de Francisco Morato, em princípios da década de 1990, circulava a lenda de um matador de cachorros. Com sua arma favorita, uma Kombi branca 85, ia e voltava do subúrbio metropolitano de São Paulo com fome de sangue: um animal desabrigado ou impulsivo por correr atrás de alguma roda logo se dava com o para-choque metálico, tendo sua vida ceifada.
O matador sabia que não podia alardear demasiadamente seus feitos de modo a comprometer o impune anonimato, fato que não o impedia, em foro íntimo, de se gabar das suas conquistas. Debaixo do bigode espesso se formava, vez ou outra, o sorriso do caçador que não se importava em recolher a recompensa, mas apenas em saber que os ossos quebrados do animal abatido dilaceraria o próprio couro peludo.
Passadas três décadas, meu pai já não parece demonstrar o mesmo orgulho dessas histórias. Quando perguntado sobre o assunto, prefere não mais contar essas histórias.
Complacência
Caminhava distraído entre as prateleiras quando dera-se com o próprio nome em um dos volumes da biblioteca da universidade que frequentava.
Não sabia muito bem o que sentir. Alegria não descrevia. Medo tampouco.
A verdade é que sempre soube da existência do livro que se esparrama, então, por entre seus dedo. Assim como dos agouros que, a troca de público e crítica, acompanhavam a obra.
Inevitavelmente, contudo, fazia correr as páginas daquela história estranhamente conhecida que por alguma razão profana sua memória por tantos anos havia lhe privado de conhecer.
Em retrospecto, ao mencionar com certa efusividade o casual encontro com a autora do livro, a mesma lhe olharia demorada e vagamente antes de vaticinar, já não mais como sua mãe, mas como a escritora experiente que era, o complacente conselho: "fuja da autoficção, meu filho".
Por então, contudo, as únicas palavras que ressoavam em sua cabeça vinham daquela epígrafe de Carlos Castaneda: "Um homem vai para o conhecimento como vai para a guerra".