I
Meu primeiro contato com a obra da escritora mexicana Valeria Luiselli foi provavelmente no ano passado quando, revirando minha lista to-read há muito empoeirada do goodreads, decidi checar o tão falado Rostos na multidão (2011) que lançaria a autora como uma das queridinhas da crítica latino-americana contemporânea.
E devo admitir que a leitura de Rostos na multidão, a princípio, realmente me deixou fascinado: Luiselli domina muito bem a prosa fragmentária e metaficcional que se alastrou pela narrativa latino-americana nesse princípio de século XXI e a investigação literária sobre a vida e obra de Gilberto Owen que conduz a protagonista em paralelo as suas andanças pelas ruas de Nova York era um prato cheio ao meu paladar.
Contudo, quando o livro chega em seu terceiro ato e se perde em um “final aberto” que, na verdade, parece mais que a escritora não sabia exatamente onde queria chegar, a experiência da leitura se abalou. Como disse uma vez Lourenço Mutarelli, às vezes é melhor um livro que termina bem do que um que começa bem. Mas como Rostos na multidão era o primeiro romance de Luiselli, o sabor levemente agridoce dessa leitura inicial não me tirou de todo o interesse pela poética da escritora que realmente demonstrava um potencial enorme em sua escrita. Numa nova investida ao catálogo da escritora, voltei meus olhos a Sidewalks (2014), debut de Luiselli no mundo literário e, para minha surpresa, um dos melhores livros de ensaios que tive o prazer de ler até hoje.
II
Como sugere desde o título (originalmente chamado Papeles falsos, mas muito bem transposto para a língua inglesa como “calçadas”), Sidewalks impõe nos 10 ensaios que formam o volume uma necessidade de movimento num mundo contemporâneo. Sem dúvidas, esse viria a ser um dos elementos centrais da poética de Luiselli - como tentei demonstrar no meu texto “Entre o ensaio e o romance: a obra de Valeria Luiselli em três movimentos” publicado no livro Cosmos littera (2022) -, mas, aqui, o movimento, sob a reflexão da ensaísta, ganha um protagonismo ímpar em que o “movimento pelo movimento” é celebrado como a expressão máxima da vida:
Mas talvez uma pessoa tenha apenas duas residências reais: a casa da infância e o túmulo. Todos os outros espaços que habitamos são um mero espectro cinza daquela primeira habitação, uma sucessão indistinta de paredes que finalmente se resolvem na cripta ou na urna – a menor das infinitas divisões do espaço em que um corpo humano pode caber.
De Veneza à Cidade do México, de Nova York a Nova Delhi; do elogio ao ciclismo como a mais genuína forma de se praticar o flâneur na contemporaneidade passando sobre a solidão das calçadas; da preocupação com a saudade (palavra intraduzível como se costuma dizer na comunidade lusófona) à conclusão de que, em alguma medida, “Um escritor é uma pessoa que distribui silêncios e espaços vazios”. Em cada uma dessas situações, Luiselli expõe, como uma ciclista experiente a navegar pela linguagem labiríntica do ensaio, suas reflexões de forma bastante ágil e prazerosa. E nós, enquanto caronas de sua prosa envolvente, conseguimos apreciar facilmente o passeio ensaístico, com suas sucessivas paisagens geográficas e sentimentais.
Tais movimentos, como é certo, não se produzem no vácuo, de modo que o espaço, enquanto elemento central para as cartografias sentimentais e nacionais que traça Luiselli, também ganha, naturalmente, um lugar de destaque nas suas reflexões.
Assim, de uma forma mais óbvia, “Flying Home”, ensaio em que Luiselli conceitualiza que “os mapas não impõem quaisquer limitações à imaginação de quem os estuda. Somente em uma superfície estática e atemporal a mente pode vagar livremente” é provavelmente a mostra máxima dessa preocupação espacial. Contudo, em todos os ensaios de Sidewalks, em maior ou menor medida, o espaço vai aparecer como um tema bastante frutífero à reflexão.
Espaço e movimento, nesse sentido, se combinam, como aponta o escritor Cees Nooteboom em sua introdução à edição norte-americana do livro, numa estrutura apenas possível pelo ensaio:
Ensaios não têm plot, livros de viagem (Chatwin, Theroux) às vezes sim; e há também o livro de viagens como uma coleção de ensaios e o ensaio que envolve viajar e olhar. Se meu sistema excêntrico de classificação se aplica, Sidewalks pertence à última dessas categorias (Nooteboom apud Luiselli, 2014a, p. 12).
Esse caráter um tanto quanto esteta e despolitizado da ensaística de Luiselli (“Um café, um jornal na mesa: folheio as notícias de ontem – pulo a política – vou às páginas de cultura”) ganharia com o Tell Me How It Ends: A Essay In 40 Questions (2017), seu livro de ensaios da autora - em que se debruça sobre a crise migratória de crianças latino-americanas nos Estados Unidos -, uma dimensão social completamente inescapável e urgente. Mas essa seriedade de de Tell Me How It Ends de forma alguma relega Sidewalks a um lugar menor na bibliografia de Luiselli. Pelo contrário, é muito claro como os elementos centrais que o segundo livro também carregam já estavam muito bem desenvolvidos em Sidewalks, tornando o livro não apenas chave na leitura da obra de Luiselli como revela a preocupação (ainda que se demonstre despreocupada) da autora com a ensaistica que navegava e seu tom inerentemente provocativo que tanto cativa o bom apreciador desse gênero.