SOBRE O CONCEITO DE NAÇÃO E OUTRAS GOZAÇÕES
SEUL, SÃO PAULO (2019) DE GABRIEL MAMANI [RESENHA]
Em 1987, o cientista social Carlos Alberto Azevedo publicaria um artigo na Revista de Crítica Literaria Latinoamericana em que se debruçaria sobre a “A imagen [sic] da Bolívia na literatura brasileira contemporânea”.
Naquele momento, o pesquisador, ao analisar uma série de obras publicadas no Brasil de então, veria como o país lusófono tinha dificuldades de reconhecer, literariamente, a Bolívia em seu imaginário. Assim, tanto o povo boliviano seria notado como um tipo caricato (seja por suas virtudes ou defeitos) como a própria nação boliviana, segundo Azevedo, seria
vista com distanciamento, muitos escritores não conseguem sequer captar a realidade boliviana. Outros verem a Bolívia como um pesadelo: mergulham "no horror que e a America Latina" (na expressão de Antonio Callado). Essa imagem esta bem viva no relato de viagem de Osman Lins e Julieta de Godoy Ladeira: "La
Paz Existe?"
De lá pra cá, mesmo que a migração boliviana no Brasil tenha se tornado massiva - de modo que, desde 2019, seria a maior comunidade estrangeira em São Paulo - a partir, justamente do fim da década de 1980, pouco podemos notar de mudança nesse cenário.
Com efeito, o que podemos perceber é um silêncio sepulcral sobre a Bolívia em nossa literatura contemporânea, anulando, em partes, a existência e experiência de várias pessoas como, por exemplo, a minha (enquanto filho de imigrante boliviano) bem como a das pessoas que poderiam se identificar com a narrativa do livro do escritor boliviano Gabriel Mamani (1985 - ) Seul, São Paulo (2019) que explora, de maneira bastante segura, a situação de muitos emigrantes bolivianos que sofrem discriminação tanto no seu país de origem como naquele que os acolhe. Afinal, se não vemos ecos dessas transformações sociais na literatura nacional, na boliviana, por outro lado, começamos a perceber esta sendo representada na primeira geração nascida após as ondas migratórias que o país passa em décadas recentes.
Nesse sentido, na trama de Seul, São Paulo, nos vemos apresentados ao narrador (nascido e criado na Bolívia) e seu primo, Tayson Pasci (um “bolibrasuco”) que, dado o conturbado período da adolescência, passam por uma intensa reflexão identitária. Não é difícil perceber, então, que estruturalmente Seúl, São Paulo se configura como um clássico Bildungsroman. Mas a forma como Mamani aborda essa reflexão - que passa pela nação, raça, migração, fronteiras, sexo e tudo mais que vem a cabeça de um adolescente - sem dúvidas traz um valor único a obra.
Ao ler o livro de Mamani, recordei da análise de Los ríos profundos (1958) que fez Ángel Rama sobre a obra de José Maria Arguedas em sua Transculturación narrativa en América Latina (1982). Nela, é perceptível como todas as transformações que ocorrem com Ernesto, personagem também andino e também adolescente em vias de uma revelação identitária, soam sisudas e profundas como sugere o próprio título do romance: a perda da virgindade, a dupla relação com o espanhol e o quéchua, o testemunho de um protesto popular, a religião e a futura guerra contra o Chile pregadas no ensino básico sempre aparacem num tom melancólico e edificante na vida do protagonista. Em Seúl, São Paulo, por outro lado, veremos todos esses elementos, mas sob uma ótica algo cômica e paródica.
Assim, por exemplo, quando o narrador se confronta, no serviço militar obrigatório, com essa terrível guerra com o Chile (devido à perda do mar pela Bolívia), tudo soa algo ridículo e o protagonista, por mais que queira levar parte daquilo em consideração, pela nação, pela terra, pela herança familiar - representada principalmente em seu pai, o filho boliviano que fica na terra -, esse conflito vai perdendo significado no humor de Mamani. A perda da virgindade do narrador é igualmente tratada com requintes de gozação, com o todo o mise-en-scene que o personagem passa até realmente adentrar um puteiro e encarar as carnes de uma dama.
Já na história de Tayson, o mesmo tom estaria ali: ele se vê como um garoto perdido entre dois mundos (Brasil e Bolívia), sem identidade, mas, por fim, encontra “seu chão” ao se tornar pai e decidir ficar em El Alto para cuidar de sua nova família. Contudo, como bem sabemos, é bem provável que essa criança não seja sua filha de verdade, pois sua namorada tinha um estranho relacionamento amoroso com o próprio primo. O clímax identitário, apesar de verdadeiro e legítimo dentro da narrativa, vem com uma pontada de escárnio, algo para não levarmos tão a sério.
E é isso que parece ser a perspectiva que Gabriel Mamani está se preocupando em sua obra. A imigração ao Brasil, ou para outros países, faz da nação e identidade boliviana elementos legítimos, mas também impossíveis se levar a sério dentro de regras canônicas do puro nacional - estabelecidas no imaginário com a independência e sua Modernidade - ou qualquer baboseira como essa.
Em 2012, ao analisar as narrativas bolivianas da década de 2000, a pesquisadora argentina Magdalena González Almada diria que, nessa produção, parecia haver uma
impossibilidade de falar de núcleos sociais que não sejam conflituosos; ao problema da ausência de singularidade social e referentes vinculados ao nacional que se apresentam como irrefutáveis e que sustentam a ideia do nacional na Bolívia, há um abandono das leituras do passado por parte dos jovens narradores, uma falta de vontade de rever a história do literário”.
Nesse sentido, sem querer lidar com os problemas “do nacional”, muitas das narrativas daquela década miravam seus olhos ao futuro, ao vindouro.
Mamani publica seu livro em 2019, ano do golpe perpetrado por uma direita raivosa e inconsequente na Bolívia contra o presidente Evo Morales e o partido boliviano MAS. É bem possível que Mamani tivesse escrito seu romance meses, talvez anos antes dos acontecimentos que deram início à crise política no país vizinho.
Mas o timing de sua publicação parece singular.
Se até a primeira década do novo século os narradores bolivianos poderiam se dar ao luxo de não pensarem sobre a questão nacional, desde aquele fatídico ano - e imagino que Seúl, São Paulo possa ser lido como o primeiro sinal dessa mudança de perceptiva - uma nova consciência sobre os problemas da nação, atravessados pela literatura e pela narrativa, parecem imperativos, mesmo que entendidos sob o humor e a paródia.
Quem sabe no futuro também não vejamos uma nova consciência não surgir por aqui também, pelos “bolibrasucos”. Estarei ansioso pela leitura.