I
Meu primeiro contato com a obra chamorriana foi um tanto quanto espontânea: vagabundeava por alamedas e vielas do Medium quando, ao ler o letreiro de uma charmosa livraria que ocupava um entre-esquinas digitais, fui captado pela curiosidade: “Writer people problems — de A a Z” davam meus olhos com o neon, e, logo abaixo, as palavras “Uma série” conferiam àquela enciclopédia (pós)moderna - em que Chamorro destilava uma boa dose de ironia a sua ensaística sobre os problemas vinculados à escrita e ao escritor - um leitor instantâneo.
Esse leitor, com efeito, foi novamente convocado à leitura quando, de grata surpresa, lhe fora obsequiado um exemplar de Divindades solitárias (2021), livro de contos que Andreas Chamorro lançou no ano passado pela editora Kotter.
II
Por certo, tal qual a produção que li no Medium, a Divindades solitárias não falta o mesmo tratamento da ensaística/ficcional/irônica que primeiro me cativou na obra de seu autor, já que o seu último conto, “DILEMA DE VICTOR HUGO”, apresenta um narrador que dialoga com uma fantasmagórica e profanamente alegre Hilda Hilst em uma auto-análise literária. Por outro lado, no entanto, Divindades solitárias me mostrou muito mais do que o retorno a um estilo e uma temática já conhecidas e dominadas pelo autor de “Writer people problems”.
Da metalinguagem inaugural, com “O AUTODIDATA”, ao jogo de espelhos do conto “O AUTODIDATA, UM CONTO DE BORGES?”, o escritor paulistano declara, logo de saída, o seu afã pela inescapável obra de Jorge Luis Borges e, em alguma medida, faz com que o ingresso do leitor à sua produção seja também um tributo a contística do escritor argentino.
Os contos seguintes, “DIVINDADES SOLITÁRIAS” e “O LEME DA LEITURA”, ainda seguem de perto o estilo e a proposta de, entre infinitos, esconder e revelar que propõe Borges, porém, já demonstram um toque próprio de Chamorro que não deixa se limitar pela influência de seu mestre. Isto é, “DIVINDADES” nos permite entrever o olhar investigativo que o escritor tem sobre o divino e profano (que se manterá ainda em outros contos do volume como “EXU QUER SE MUDAR” e “VISITA DE SEXTA-FEIRA SANTA”), enquanto “O LEME” sugere uma alegoria sobre o sistema literário contemporâneo que toca a realidade de uma maneira com a qual o grande Borges por vezes se furtava a fazer.
Ocorre que, ao contrário do tom acadêmico que dominava a prosa de Borges, assim como a frieza que o argentino tinha com temas políticos (dado a seu posicionamento algo a direita, algo conservador) tratados em seus contos, Chamorro, no miolo do seu livro — composto pelos contos os contos “O QUADRO EM BRANCO”, “SOB A PALMA DE ADICIA”, “NÊMESIS”, “VISITA DE SEXTA-FEIRA SANTA”, “O ENGODO DE LAURA” e “MÁRCIA, RUA CAPITÃO MOR” — tanto elabora uma narrativa ágil e fluida, composta em fluxos de consciência, composição fragmentária e demais técnicas que aumentam o dinamismo do seu ritmo, como também adentra temáticas de cunho social (em questão de gênero, sexualidade, violência urbana, tolerância e liberdade religiosa) muito mais próximos da visceralidade da crônica brasileira e de uma linguagem de vanguarda. Entre acertos e erros, Chamorro demonstra, nesse segundo momento, que não pensa a sua literatura apenas como um joguete para especular o sexo dos anjos (“NÊMESIS” que o diga), mas exibe um claro propósito de evidenciar os problemas que permeiam a sociedade brasileira através de um projeto estético vivo e de personalidade.
O terceiro - e quiçá o que mais me apeteceu — arco, digamos assim, em Divindades solitárias, me parece ser os que compõe os últimos três contos: “EXU QUER SE MUDAR”, “SANGRIA NUMA NOITE DE BAHIA” e o já mencionado “DILEMA DE VICTOR HUGO”. O que parece unir tais contos, mais do que suas semelhanças, são sua heterogeneidade. Em “EXU QUER SE MUDAR”, vemos Chamorro compor um conto de terror com a mesma questão religiosa de contos anteriores mas, agora, sob uma linguagem intrigante, como se fosse um thriller. “SANGRIA NUMA NOITE DE BAHIA”, talvez o melhor conto, se atém de forma muito atenta a ação de uma disputa narrada com maestria e um contexto histórico provocativo. Por fim, “DILEMA DE VICTOR HUGO”, vem dar o brinde final em uma pequena trilogia na qual Chamorro parece experimentar mais e de uma forma diferente, tanto liberto do peso da tradição literária como do peso da realidade que precisa ser tratada em outras páginas.
Apesar de ter em si esses três distintos momentos, Divindades solitárias passa uma mensagem muito clara ao fim da sua leitura: o livro funciona como um bildungsroman no qual Chamorro, ao fim de sua jornada, grava, metafórica e literalmente, seu nome sobre o papel e ingressa nas letras nacionais.
III
Demorei a escrever essas linhas.
Para ser sincero, ultimamente tenho demorado a fazer muitas coisas.
Do momento que terminei o livro ao momento em que escrevo essas palavras, um turbilhão profissional e pessoal acabou me sugando em seu exaustivo movimento do qual, penso, começo a me desvencilhar. De uma forma irônica, acredito que esse tempo tenha sido bom para voltar ao Divindades solitárias com um olhar distinto, assim como tenha sido bom voltar a escrever, após meses, justo sobre esse livro, sobre essa iniciação literária.
Writer people problems, afinal.