Observação: esse texto foi escrito como prefácio para o novo livro do escritor Andreas Chamorro, A orgia perpétua ou o relatório de Pimenta (2022). Caso você se interesse pelo material após a leitura do texto, você poderá encontrar mais informações sobre o lançamento do livro nesse link: ACESSE AQUI.
Em retrospecto, penso que ter lido A orgia perpétua ou o relatório de Pimenta (2022) durante uma viagem foi, mais que uma coincidência feliz, uma experiência necessária de fruição com o mais novo livro de Andreas Chamorro.
De fato, o meu hábito de ler em viagens, que teimava em cultivar ao longo dos anos, havia cessado com a chegada da pandemia que, mesmo não tenha impedido o trânsito imaginativo de escritores e leitores (como bem se percebe nos contos do escritor paulista, em partes redigidos durante e sobre a pandemia), tornou a leitura um ato geograficamente imóvel não apenas para mim, mas a todos que se mantiveram em casa na busca de um refúgio contra o vírus mortal. Contudo, justamente quando pude voltar ao meu quisto hábito, dado o abrandamento da Covid e o afrouxamento do ir e vir de pessoas, e dei com os olhos sobre A orgia perpétua, algo a mais se pôs em movimento que o ônibus que me levaria a fronteiras intermunicipais.
A bem da verdade, ao nomear a primeira parte de seu livro “Dos a devira”, Chamorro não foi exatamente discreto em seu projeto literário. E menos discreto ainda seria quando elegeu “dez por cinco” - conto que me quando me pôs em situação metanarrativa visto que a narrativa faz de uma viagem de ônibus o palco principal do encontro entre encontro de Carina e Plínio - como o texto que abriria o livro.
Contudo, tal qual Carina, que só percebeu a relevância inaugural que aquele movimento cotidiano teria sobre sua vida em um momento posterior, eu só me atentei para a posição de “dez por cinco” - assim como de “Dos a deriva” - quando já cortava batatas de volta a casa. Graças a prosa fluida do autor, o primeiro passo para a viagem que configura e perpassa por todo A orgia perpétua ou o relatório de Pimenta se deu sem ser percebido na imensidão que conforma os limites da prosa chamorriana.
Imensidão essa que vai desde as doenças da mente com “dez por cinco” e “Javé” aos confins da ficção especulativa com “a barriga do mindinho” e “Silver Plath”; da fé candomblé de “as mães” e “Ulysses Guimarães toma ebó” até as torres de marfim acadêmicas de “Ramiro Adotesilé” e “nobelíssima; da descoberta da sexualidade de “o pau” e “a orgia perpétua ou relatório de Pimenta”, passando pelas especulares regiões auto e metaficcionais de “como se faz uma verdade” e “o monstro”. Chamorro nos conduz por todas essas paisagens por meio de sua prosa de se move e pede movimento de quem a lê.
Quanto ao aspecto mais cartográfico dessas narrativas, os contos de “Dos nascimentos” são um exemplo perfeito disso.
Enquanto “a volta de quem não veio” demonstra os desdobramentos históricos tanto dos que viajam por insolência (como os portugueses) como os que viajam por destrato (como os escravizados) desde uma concepção de movimento bastante clara, quer dizer, a partir dos deslocamentos marinhos, em “dos pássaros se vê”, conto narrado proustianamente sobre uma cidade estática, quase fotográfica, somos nós que nos movemos, conduzidos lentamente com a ajuda da narração por sobre os caminhos do rio, as vielas da cidade e ao coração dos homens. Nesse último destino, contudo, será “as mães” que brilhará mais forte na parte“Dos nascimentos” já que é nela onde a prosa de Chamorro cruza a linha da vida e da morte, do mundano e sagrado, dos afetos e medos.
Com efeito, embarcados nessa viagem que além de espacial é também sentimental, A orgia perpétua não vai apenas nos engrandecer por suas cativantes paisagens, grandes navegações e belos sentimentos, mas também sabe conduzir o leitor aos mais profundos estados de bad trip.
Elas começam jocosas, ali, com “seu Joca Luis” e a espiral kafkiana que entra Gabriel. Com “Javé”, e o plano paralelo de existência que vive João Paulo, já a muito dentro dessa bad trip, o tom humorístico é substituído pela empatia que a descrição minuciosa traz consigo. No terceiro estágio dessa viagem interna, “teia da aranha” percorre por um labirinto de pensamentos e sentimentos com um relato em primeira pessoa que aproxima ainda mais o leitor aos problemas e ponderações que o protagonista faz para tentar resolver esse puzzle insolúvel que permeiam os afetos e medos humanos. E em sua forma mais radical, Chamorro exibe essa viagem literalmente como contos de terror, seja em “não vou te machucar” - com seu final trágico e surpreendente - ou em Franco Ferpa Camargo - que consegue ser ainda mais assustador ao atingir seu clímax com um sentimento paranoico e a eminência de um crime vil não pela arte, mas pelo comércio da arte.
É claro que em cada um desses contos, o elemento do movimento espacial também se fará presente: a corrida de uber em “seu Joca Luis”; a mudança de João Paulo em “Javé”; as cenas de trânsito que cercam “teia de aranha”; o ir e vir noturno de “não vou te machucar” e a imobilidade do protagonista de “Franco Ferpa Camargo” dada a movimentação de seus perseguidores. Contudo, fica muito claro que Chamorro não pretende se ater ao mero recurso espacial e investe também nos eventos internos que essas viagens causam em cada personagem tanto quanto pretende causar no leitor. O autor, assim, coloca camadas de movimento em sua obra.
Com efeito, outra camada onde o movimento é trabalhado possível de ser percebida nos contos de A orgia perpétua é a temporal. E em ambos “o monstro” e “o manuscrito de francesa” é onde conseguimos ver essa camada tanto sob um olhar mais aproximado como distante.
Dessa maneira, enquanto “o monstro” coloca um pequeno objeto - cotidiano na atualidade, divino a 50 anos atrás - nas mãos de uma das maiores escritoras brasileiras para criar um jogo temporal clássico (com regras estabelecidas, relação ponto A e ponto B de interação inter-temporal, consequências desastrosas ou, nesse caso, monstruosas), “o manuscrito de francesa”, por outro lado, retoma as influências borgeanas de Chamorro para criar um infinito dentro de outros infinitos temporais e assim espelhar ou esconder as várias facetas de Françoise por todo o continuum temporal.
Para além do que estes contos nos remetem internamente com suas histórias, é curioso ver como eles também serão, junto aos demais que compõe a parte “dos autoficcionais”, os textos em que o autor mais revela suas influências.
Transpostas do passado para o presente do livro, imaginando uma leitura futura, tais referências, se firmam nesse constante movimento temporal, que acompanha os espaciais e sentimentais, também em uma tradição literária e narrativa.
O movimento de A orgia perpétua, como se vê, é complexo. Não é conduzido como uma pluma, elemento uno e sem agência, a esvoaçar sem rumo até atingir o solo, mas sim como um pássaro que, sendo um animal articulado - que garante sua agilidade e eficiência -, vence as leis da física alça voo. Chamorro, nesse sentido, alcança com seu livro uma das Seis propostas para o próximo milênio de Ítalo Calvino e imprime em sua coletânea o adágio latino festina lente (“apressa-te lentamente”).