TESE
Em 2018 o escritor peruano Mario Vargas Llosa — único latino-americano vivo e quiçá o último a ganhar o primeiro Nobel de Literatura — escreveria um polêmico artigo chamado “Novas inquisições” para o periódico El país no qual expunha a sua posição sobre o movimento feminista e a atuação direta deste na forma como lidamos com a literatura atualmente.
Segundo Vargas Llosa, assim como a moralidade cristã ou de regimes fascistas algum dia cercearam a literatura em favor de seus espúrios interesses, o feminismo estaria hoje numa cruzada contra a literatura a fim de “depurá-la do machismo, dos preconceitos múltiplos e das imoralidades”. Essa depuração se apresentaria, por exemplo, como a tentativa de se proibir a apresentação de certos escritores em sala de aula — como os machistas Pablo, Javier Marías e Arturo Pérez-Reverte — ou mesmo de se censurar a republicação de obras e autores com um passado problemático - como foi o caso do projeto da Gallimard em republicar Louis Ferdinand Céline que, de fato, após protestos, foi abandonado.
“O feminismo é hoje o mais resoluto inimigo da literatura”, afirmaria assim Vargas Llosa em sua coluna de opinião, mesmo que, inteligentemente, colocasse a culpa de tais atos sob a responsabilidade de facções radicais ao generalizar sua postulação. Como esperado, o assunto não se encerraria por ali.
Em 2019, em tempo da abertura da “Bienal de Novela Mario Vargas Llosa” em Guadalajara, México, um manifesto assinado por mais de 100 escritoras e escritores chamado “Contra el machismo literario” circulou pela internet denunciado a disparidade de gênero nesse evento específico e repudiando o comportamento sistêmico nos eventos literários, em geral. Segundo os assinantes do manifesto, é “inadmissível que no século XXI, em meio a demandas por igualdade, um evento como a Bienal de Romance Mario Vargas Llosa seja organizado sem uma perspectiva de gênero”.
O escritor peruano, que dá nome ao evento, parece ter levado o assunto para o lado pessoal. Um tanto indignado, publicaria na sua coluna no El país o texto “Novas inquisições (II)”, que demonstra, em partes, a repercussão de sua diatribe: retificou alguns números do evento, reafirmou a sua posição de que a qualidade, mais do que a quantidade, é sempre o critério definidor quando se fala em literatura e que:
O feminismo corre o perigo de se perverter se adotar uma linha fanática e intransigente da qual existem, infelizmente, muitas manifestações recentes, como a de querer rever a tradição cultural e literária, corrigindo-a de maneira que se adapte ao novo cânone, ou seja, censurando-a. E substituindo o desejo de justiça pelo ressentimento e a frustração.
No que me diz respeito, posso garantir que, enquanto a Bienal e o Prêmio de Romance que levam meu nome existirem, não haverá quotas aritméticas de homens e mulheres e o único critério com o qual se continuará convidando os participantes será o da excelência literária.
Sobre todo o ocorrido, o que Vargas Llosa parece ter feito com seus dois textos é o que pode ser chamado de iscagem: 1) a partir de atos radicais, se generaliza polemicamente uma opinião sobre um grupo político e; 2) assim que esse grupo reagir as opiniões do proponente, o polemista se utiliza dessa mesma reação para reafirmar o seu ponto inicial.
No entanto, se observamos a questão sob uma perspectiva mais ampla do que os constantes afagos e acintes que orbitam o ego do escritor peruano, poderíamos, quiçá, prosseguirmos com a polêmica e nos indagarmos: teria Vargas Llosa algum tipo de razão em dizer que o feminismo é o grande inimigo da literatura hoje?
ANTÍTESE
Em 28 de maio de 2021 o escritor Luiz Ruffato publicaria no Jornal Rascunho a lista d’”Os 35 melhores romances brasileiros”. Para tal feito, o mineiro se utilizaria de apenas dois critérios: 1) que tais livros “conseguiram alcançar o grande objetivo da literatura, o equilíbrio entre fundo e forma” e 2) que o inventário findaria na década de 1990, não se estendendo pela literatura produzida já no século XXI.
A tarefa de Ruffato, a princípio, parecia um tanto quanto banal. Inclusive, o que o autor se propunha era, de certa forma, apenas uma atualização de sua lista de 2014 publicada no jornal El país. Mas sendo Rufatto um escritor tão experiente como atento às paixões que envolvem listas, o mesmo tentaria, de alguma forma, se precaver às reações adversas: “Após a leitura da minha relação, você poderá concordar ou discordar, no todo ou em parte, e é nisso que consiste o fascínio das listas: trata-se somente de provocação intelectual e não verdade a ser defendida”.
O que o escritor mineiro, e também o jornal literário, talvez não esperassem é que a lista seria muito mal recebida, principalmente pelas feministas que viram na ausência significativa de mulheres — apenas 4 — no texto uma problemática bastante condenável.
Com efeito, após críticas nas redes sociais, o Rascunho abriu espaço para uma espécie de “retratação” (“Vamos procurar publicar uma lista realizada por uma escritora mulher futuramente”, diria o acuado Jornal em um post do Instagram) que ainda não se concretizou, mas que já no dia 08 de junho de 2021 veria a questão ser endereçada no próprio veículo de comunicação pela escritora Ana Elisa Ribeiro com o seu texto “O problema das listas”.
Em sua réplica ao texto de Ruffato, Ribeiro lembrou das listas paralelas que começaram a se formar nas redes sociais e constatou que “Temos um problema de omissão historiográfica e educacional muito mais grave do que a lista do Ruffato”, ainda que as farpas não faltassem ao escritor cataguasense:
Se eu fosse instada a fazer uma lista de melhores romances que li (eu li, pessoalmente) e precisasse parar nos anos 1990 (lançados até aí), muito provavelmente teria um conjunto menos masculino. (…)Bom, minha lista não é pública. E nem faz diferença alguma que não seja. Quem sou eu na fila do pão? Isso é outro ponto interessante nesta arena literária, mas também política e social: quem produz uma lista faz uma diferença danada. É um bom jeito de verificar como anda aí a corda das pessoas. Uma lista publicada pelo Luiz Ruffato faz tremer. A contralista da profa. Eurídice fez tremer uma espécie de bolha ligada a esse tema, mas não sei se cutucou geral, como seria bom que acontecesse, do ponto de vista de um efeito mais amplo.
Ana Elisa não parece ter, de pronto, todas as respostas para esse debate, de modo que, já concluindo o seu texto, se questiona belicosamente: “Quem se habilita, entre as autoras [a escrever a lista para a Rascunho]? E que lista seria esta, menos ou mais “espontânea”? Vamos de vingança ou de exame minucioso?”.
Acredito que podemos pensar em outras perguntas que parecem escapar ao debate levantado por Ribeiro: Rufatto não tem direito à opinião sobre suas próprias preferências pessoais ou deveria se limar antes de mandar o texto ao jornal? Deveria Rufatto se obrigar a ler mais mulheres para satisfazer a necessidade de uma lista mais igualitária ou, pelo contrário, deveria Rufatto, uma pessoa progressista e contemporânea ao século XXI, já estar, a essa altura, muito bem consciente de suas preferências? Deveria o periódico ter censurado parcial ou totalmente a lista na edição? A qualidade é mais importante que a quantidade, como diria Vargas Llosa? Enfim, como resolver a desigualdade abismal que existe na literatura ontem e hoje?
SÍNTESE
Em 14 de abril a revista cassandra publicaria a sua “Apresentação” de forma bastante sucinta e direta: “cassandra surgiu da ideia de reunir mulheres artistas de diversos lugares e com diversas vozes para promover as artes e a literatura feitas por, de e para mulheres”. Sob o signo do mito grego que dá nome ao projeto, o grupo diria ainda que “Uma mulher que não se antecipa é engolida” e que “Em tempos [obscuros] como esses, em que a arte é vista como inimiga e nós mulheres vemos nossos direitos ameaçados, toda voz é uma resistência”.
“Toda mulher é um grito”, encerram as editoras na apresentação do projeto, “cassandra é um grito”.
E o grito de cassandra, com efeito, não é o único a ulular pelo espaço literário contemporâneo: como dirá Laura Redfern Navarro para a revista ano II: ensaio em seu texto “A RECONSTITUIÇÃO DA FOFOCA — reflexões sobre literatura, mulheres e internet” de 22 de junho de 2021: “inúmeros movimentos e coletivos como, notadamente, o Leia Mulheres, o Mulherio das Letras e o Mulheres que Escrevem, focados em divulgar, estimular e unir a produção feita por mulheres” têm se tornado uma forte tendência tanto no cenário brasileiro como internacional a partir das novas formas de se expressar e militar, pois:
Sabendo a presença de um cânone ainda fortemente masculino e dominado por uma isenção política, que deixa de enxergar a literatura como voz social e crítica, fenômenos como esse não apenas são consequência de uma conquista de direitos pelas mulheres ao longo do tempo, mas revelam a importância de um instrumento que os potencializa — a internet.
“Seria o feminismo o grande inimigo da literatura hoje?” De uma forma suscita, sim, o feminismo é o grande inimigo do que Vargas Llosa considera ser “literatura”, isto é, uma caixinha vedada às transformações da sociedade e com regras um tanto quanto arbitrárias do que significa ‘qualidade’. Quer dizer, o feminismo não tem (e não deve ter) o poder autoritário de decidir draconianamente o que se pode ou não na literatura como assume a estapafúrdia tese de Vargas Llosa. Contudo, o mesmo vale para o próprio laureado de modo que os mesmos homens — brancos, héteros, cis, ricos, etc. — não podem continuar a decidir patriarcalmente o que é ou não Literatura.
É inegável que os tempos são outros: “uma proporção devastadora, em especial quando lida em 2021”, dirá Ribeiro sobre Ruffato. “É inadmissível que no século XXI, em plena onda de reivindicações por igualdade”, dirão as assinantes do manifesto contra Vargas Llosa. “Toda mulher é um grito” dirá a revista cassandra. E precisamos todos aprender a lidar com essa nova realidade.
REFERÊNCIAS
CASSANDRA. Apresentação. revista cassandra, 14 de abril de 2021. Disponível em: https://medium.com/revistacassandra/apresenta%C3%A7%C3%A3o-e451942f02e5.
“CONTRA el machismo literario”, la carta que cuestiona la disparidad de género en los eventos culturales. Infobae, 19 de maio de 2019. Disponível em: https://www.infobae.com/america/cultura-america/2019/05/27/contra-el-machismo-literario-la-carta-que-cuestiona-la-disparidad-de-genero-en-los-eventos-culturales/.
REDFERN NAVARRO, Laura. “A RECONSTITUIÇÃO DA FOFOCA — reflexões sobre literatura, mulheres e internet”. ano II: ensaio, 28 de junho de 2021. Disponível em: https://medium.com/revista-ensaio/a-reconstitui%C3%A7%C3%A3o-da-fofoca-db6141e410ae.
RIBEIRO, Ana Elisa. O problema das listas. Jornal Rascunho, 08 de junho de 2021. Disponível em: https://rascunho.com.br/liberado/o-problema-das-listas/.
RUFFATO, Luiz. Os 35 melhores romances brasileiros. Jornal Rascunho, 28 de maio de 2021: Disponível em: https://rascunho.com.br/liberado/os-35-melhores-romances-brasileiros/.
____________________. Meus romances brasileiros preferidos. El País, dezembro de 2014. https://brasil.elpais.com/brasil/2014/12/09/opinion/1418124717_153514.html.
VARGAS LLOSA, Mario. Novas Inquisições. El País, março de 2019. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/03/16/opinion/1521215265_029385.html.
____________________. Novas Inquisições (II). El País, junho de 2019. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/06/13/opinion/1560443841_951481.html.