I
Em seu livro Mentiras Contagiosas (2008), o escritor mexicano Jorge Volpi imagina o necrológio futuro do romance enquanto gênero. “Certifico a morte do romance”, nos diz o narrador de “Réquiem para o romance”, e prossegue, “Segundo os cronistas, o último exemplar desta espécie apareceu faz cem anos: um pobre arremedo de Don Quixote, perpetrado por um tal Menard e publicado na Cidade do México em 2605”.
Em seu curioso jogo cíclico, o narrador de Volpi menciona a miséria estilista do Exemplar Quixote e a inverossimilhança da ficção (conceito já extinto nesse futuro possível) como uma causa possível para a desaparição do romance enquanto gênero.
A engenhosidade de Volpi em seu volume é, claro, sarcástica: como uma forma contagiosa, como um vírus ou um parasita, o romance, após este contato, torna a espalhar suas mentiras pelos séculos futuros. Mas ao contrário do que o escritor mexicano gostaria de admitir e imaginar, o fim do gênero pode estar muito mais perto do que imaginamos.
Números de 2017 - isto é, pré pandemia - do relatório Literature in the 21st Century: Understanding Models of Support for Literary Fiction conduzido pela Arts Council England (ACE) no Reino Unido demonstravam que, já naquele então, apesar do mercado editorial ter alguma recuperação após a recessão de 2008, as vendas da ficção literária seguiram numa crise própria. Diziam os dados:
Que as vendas impressas de ficção literária caíram na última década, principalmente após a recessão. Hoje, apesar de alguns resultados positivos nos indicadores mais recentes, as vendas permanecem significativamente menores em relação ao período anterior a recessão;
Há apenas uma pequena "cauda longa" de romances que vendem em quantidade suficiente quantidades para sustentar um autor; todos os autores, exceto os 1.000 maiores escritores no país, vendem muito pouco para fazer carreira de vendas sozinho;
O preço de um livro de ficção literária caiu em termos reais ao longo do últimos 15 anos. Não só as vendas de livros caíram em ambos os volumes, mas, crucialmente, os editores estão recebendo menos dinheiro por cada cópia vendida.
Com efeito, o que concluia o relatório é que houve uma queda do interesse por ficção literária de 50% no período de 15 anos sendo que, com a nova crise global pandêmica, talvez esse número esteja ainda menor atualmente.
A Inglaterra, de fato, ao contrário do que ainda acreditam seus moradores, não é o centro do universo. Mas se cruzamos estes dados com os apresentados pelo setor brasileiro, por exemplo, é possível de perceber algum tipo de padrão na queda da ficção também pelas bandas de cá assim como curiosidades divergentes.
Desse modo, como noticiava a Folha logo em 2013, “Ao contrário da boa fase da não ficção produzida no país, romances e contos brasileiros quase nunca emplacam seus títulos na lista de mais vendidos”. E realmente, como comprovaria o relatório apresentado pela Câmara Brasileira do Livro em 2015 (primeiro de uma série histórica), a participação da ficção do mercado em 2014 era de apenas 19%. Esse número, segundo os dados de 2021 (apresentados em 2022), não melhororam quando consideramos as subcategorias do setor (literatura infantil, literatura juvenil, literatura adulta e literatura jovem adulto) que somam 19,5% do mercado.
Notícias sobre o julgamento antitrust do futuro maior conglomerado editorial do mundo, que funde a Penguin Random House e a Simon & Schuster, também não parece muito animador já que, segundo a Vox, “Editores de livros passaram 3 semanas no tribunal argumentando que não têm ideia do que estão fazendo”.
A afirmação do veículo parece corroborada pela colocação de Markus Dohle, CEO da Penguin Random House, ao dizer durante seu depoimento no tribunal que “Tudo é aleatório na publicação. O sucesso é aleatório. Os mais vendidos são aleatórios” e que os editores e editoras da PRH seriam como “investidores-anjo dos nossos autores e seus sonhos, suas histórias”. Por certo, a Aviva Tuffield, ao comentar o alvoroço formado entorno do julgamento, reforçaria essa perspectiva ao opinar ao The Observation que o sucesso atual de um livro, especialmente de um livro de ficção, é quase uma ficção em si:
Muitos “fatores não científicos” influenciam o desempenho de um livro (especialmente com ficção). Há o fator de competição: é lançado no mesmo mês que livros de romancistas de renome que levam muitas vendas e atenção – ou um romance com tema ou cenário semelhante acabou de aparecer? Para um impulso positivo, um livro pode ganhar um prêmio ou receber muita atenção do prêmio.
Tais colocações parecem deveras alucidadas dada a situação de um dos maiores mercados do mundo assim como para a grandeza de ambas as empresas que se fundem visto que, como notificado pelo The Guardian, o número de adultos lendo romances e contos nos Estados Unidos atingiu um novo patamar negativo em 2018: de 47% que liam romances e contos em 2008 passou a 41,8% em 2017. Números estes que acompanham uma queda de 17% nas vendas de ficção no mesmo período, como noticiado pela Publishers Weekly.
Em “Réquiem para o romance”, Volpi imagina a morte da ficção literária nos séculos XXII e XXIII onde escritores pouco criativos apenas repetem “modelos cansativos e com efeitos simulados da mídia audiovisual, suas mentiras não buscavam mais perturbar seus contemporâneos, mas embalá-los para dormir. A ficção deixou de se aproximar da realidade obliquamente e limitou-se a se regozijar com o único propósito de entreter”. Desse ponto em diante, a situação do gênero apenas declinaria: durante os séculos XXIII e XXIV os leitores perderiam o gosto pela coisa e, de repente, parecia mais estimulante “ler ensaios, relatórios ou entrevistas do que ficar atolado em besteiras imaginárias. Após a crise de 2666, as grandes editoras abandonaram suas coleções de romances para se dedicar ao que ainda era conhecido como não-ficção. Desacreditado o poder evocativo da mentira, os leitores se interessavam apenas pela realidade ou, pelo menos, pelo que lhes era vendido como tal”.
Ao que tudo indica, os séculos imaginados pelo escritor mexicano se condensaram em apenas algumas décadas de forma que não me reprimo em prever (como Volpi, igualmente subestimo o tempo) que os números de publicação e venda da ficção em romances e contos, que por certo cimentou a ideologia moderna que conhecemos por literatura como bem expôs Terry Eagleton em sua Teoria da literatura: uma introdução, regredirá, até 2050, a números pré-século XIX quando as taxas de alfabetização global eram ínfimas.
Mas afinal, o que essa queda da ficção literária pode significar?
II
Ao se defrontar com a declaração de um famoso escritor americano que adorava romances porque, “ao contrário de quase tudo, eles são inúteis”, Jorge Volpi, em seu livro Leer la mente (2011), monta um complexo ensaio no qual defende o papel da ficção em nossas vidas e a sua capacidade inerentemente humana de nos tornar precisamente aquilo que somos, isto é, humanos.
Não pretendo aqui tentar refutar a argumentação do escritor mexicano (inclusive porque a mesma está seriamente respaldada em evidência científicas) quanto a importância da ficção. Mas quando falamos da importância dos romances, a coisa fica um pouco mais complexa. Diz Volpi: “ler um romance supõe um desafio criativo e de autoanálise”. Não é por mais que sublinho a palavra desafio, afinal, como nos lembra Genette, "(...) a leitura (esquecemo-nos disto com frequência) exige mais competência que a escrita", isto é, um processo mental, complexo de compreender palavras, sintaxe, contexto, formar imagens mentais e co-criar uma história a partir do processo da leitura de um livro.
Esse processo, no entanto, não é tão exigente quando se assiste a um filme ficcional - que se autoreproduz - ou mesmo uma mini narrativa que você assiste em um tiktok para logo assistir outra e mais outra e mais outra. Dessa forma, não é difícil dizer que um dos motivos do sumiço da ficção literária se dá pelo próprio acesso a ficção que, antes limitado a uma tecnologia trabalhosa, cara e escassa, agora pode ser encontrada, da maior ou menor qualidade, a apenas um scroll de distância. Em outras palavras, há um sumiço da ficção literária, mas de forma alguma da ficção.
Essa é, contudo, a resposta fácil para um problema difícil. E como sabemos da história recente do mundo, tais alternativas tendem a se esgotar rapidamente.
Inclusive porque, apesar de outras alcunhas e percepções, a literatura ficcional existe pregressa ao período moderno e ao romance e provavelmente continuará existindo posterior ao seu fim. Mas há de se lembrar, também, que mesmo que exaltada por filósofos e estadistas do passado, poucos habitantes da grécia helênica ou roma clássica, por exemplo, de fato tinham acesso a essas produções (pense nos escravos, mulheres e demais populações não consideradas como povo) artísticas.
Caso me alongue sobre esse fenômeno em textos futuros, uma questão que parece bastante pertinente em todo esse contexto é que, ao contrário do que dizia o famoso escritor referenciado por Volpi, de algum modo algum pode-se afirmar que a literatura ficcional foi inútil visto que a mesma cumpriu exatamente a função que lhe foi atribuída ainda no século XVI, i. e., a de se tornar o grande veículo para a massificação da educação e alfabetização e consequentemente a grande difusora da ideologia Moderna das sociedades ocidentais. Nessa ótica, considerando o atual nível de alfabetização global e o rompimento com o pacto Moderno no mundo Ocidental, a literatura perde seu espaço e é solapada por veículos mais sofisticados de propagação ideológica/artística.
Quanto ao fututo da literatura e de sua base ficcional, quando os vislumbro (sempre parcialmente) em anos vindouros, vejo tal arte retornando ao seu estado de nicho ainda que este extremamente elitista como se demonstrou no passado. Afinal, com a lenta morte do sistema profissional da literatura capitalista - erigido entre os séculos XIX e XX - há de se retornar, ao menos que provisoriamente, a um sistema controlado por quem sempre esteve no poder e pode arcar com os custos de uma produção literária cara não a troco de uma formação profissional mas apenas sob os louros de prestígio intelectual.
Enfim, o que parece ocorrer com o futuro da literatura no mundo é o mesmo que vemos no Brasil desde sempre.
O que resta então para o futuro da literatura? Pode a não-ficção ser o futuro da arte escrita? Com novas composições sociais, podem novos gêneros surgirem e se tornarem, como foi o romance para a Mordenidade, como disse Franco Moretti, o seu grande veículo identitário? Podemos finalmente voltarmos a ver um protagonismo da literatura oral?
Só o tempo dirá.
Um forte abraço e até mais,
P. S. 1: o valor da população brasileira coberto pelo mercado da ficção literária anteriormente citado era APENAS para e-books de modo que retirei o dado como uma inverdade. E mesmo que esse fosse verdadeiro seria necessário uma pesquisa específica sobre consumo de literatura ficcional no país para medir essas discrepâncias de forma mais segura. Contudo, a pesquisa mais abrangente que temos sobre hábito de leitura no Brasil, o Retratos de leitura no Brasil, não faz diferença de gêneros e nem parece incluir a não-ficção como uma possibilidade de literatura (veja a pergunta P20B: “E quem é o autor deste último livro de literatura, como contos, crônicas, romance ou poesia que o(a) sr(a) leu?”)
P.S. 2: Assim que terminei de escrever esse texto o jornal The Print publicou uma matéria com o título “O romance está morrendo na Índia? Editores perseguindo cada vez mais não-ficção”. É preciso lembrar que a Índia é atualmente um dos países que mais lê regularmente no mundo, fato que contribui para essa análise.