MELHOR LEITURA - INSTRUÇÕES PARA MONTAR MAPAS, CIDADES E QUEBRA-CABEÇAS - FLÁVIA PÉRET
Em 2024, nenhuma leitura me causou tanto espanto quanto Instruções para montar mapas, cidades e quebra-cabeças (2021) de Flávia Péret.
“Começa a amanhecer nesta parte do hemisfério sul e as manhãs são sempre menos densas de poluição e calor. Olho através da janela do ônibus a cidade, a primeira coisa que vejo é a placa em neon do Hotel Madri e descubro que tudo – quer dizer, quase tudo – continua no mesmo lugar.”
Fez um ano, em novembro, que moro na capital mineira. E apesar de ser uma das mais importantes cidades do país, pouco tenho de Belo Horizonte em meu imaginário literário-sentimental. Instruções para montar mapas, cidades e quebra-cabeças (2021), romance de viagens que constrói um universo narrativo sobre a cidade de Buenos Aires, me abriu esse imaginário.
Se se converteu mundano a escritores latino-americanos que, neste início do século XXI, passaram a abusar do recurso da fragmentariedade e polifonia narrativa em favor de uma egolatria autoficcional, Péret, em via contrária, usa das mesmas ferramentas para criar um diálogo literário entre personagens e leitores, marcos históricos e afetos ficcionais, imagéticas estrangeiras e reflexões sobre terras natais, e, fundamentalmente, converte experiências cotidianas em Literatura.
Como lemos no texto de apresentação de Instruções…, este, além de nos desafiar a decifrar seu quebra-cabeças de histórias cruzadas, é também um livro “contra o turismo tal qual praticado e evocado pelo capitalismo contemporâneo”. Ou seja,
O turismo como prática que se resume, nas palavras do filósofo Félix Guattari, “quase sempre a uma viagem sem sair do lugar, no seio das mesmas redundâncias de imagens e comportamentos”. Ao não abordar os famosos cartões postais portenhos e muito menos o imaginário criado em torno da cidade: o tango, o vinho, a sofisticação, o livro convida leitores – também turistas em algum momento da vida – a fugir desses cities tours oficias e criar uma cidade menos pré-configurada, no entanto, mais aberta à diferença, ao encontro e ao inesperado.
Nesse ano, quando saía para trabalhar, passava inevitavelmente por aquele letreiro do Hotel Madri e lembrava da obra de Péret que, de fato, pouco menciona Belo Horizonte, mas transforma com facilidade um universo conhecido em afetivo.
O cotidiano é uma gaiola, é preciso olhar demoradamente para cada lugar, pessoa ou coisa a fim de que ela perca sua natureza familiar e, assim, encontrar nas fissuras do banal o bilhete do homem que iria se jogar da ponte, mas desiste um minuto antes do salto.
Do homem que se jogaria da ponte ao poema de amor de Juan Miguel. Do olhar curioso da narradora pelos chineses que populam o centro de Buenos Aires (como o centro de Belo Horizonte) ao letreiro neon do Hotel Madri: Péret nos tira da banalização e apresenta uma cartografia sentimental, geográfica e literária que valerá, também, a sua leitura.
MELHOR SONHO - NÃO PESAVA UMA PLUMA
Seguia por uma estrada de terra em busca de algo perdido ao onírico.
No contemplativo caminhar, o terreno paulatinamente se tornava mais rústico, o céu perdia sua tinta e o despropósito da viagem só encontraria sentido quando, ao chegar na curva do sonho, uma felina figura, de feições cósmicas, se apresentara diante dos olhos: corpo cavalar, orelhas colossais, pelugem aroxada, a criatura levantou a cabeça e, sem muito interessante, me olhou.
Depois de um exame que me gelara a alma, não parecia ter me considerado presa.
Voltou sua curiosidade ao solo e pouco se importou que, com cautela, seguisse vagarosamente meu caminho.
Dali em diante, avistava, na capoeira, outros seres da mesma espécie correndo em uma velocidade anti-natural. Brincavam ferozmente entre si e desvaneciam nos arbustos como num piscar de olhos.
Apesar do coração acelerado, mantinha o ritmo. Sempre em frente. Precisar seguir.
Por quê?
Já muito adentrado em mim mesmo, perdi o passo.
Posto no meio da via, um felino menor me franqueava a passagem.
Parecia um filhote. Parecia assustado.
O que fazer? Contornar? Esperar?
E no meu breve instante que duvidei, correu em minha direção e pulou sobre mim.
Esperei pelo pior.
Mas o pior não veio.
Só ficou ali.
Parado.
Não pesava uma pluma.
E depois de um minuto, com a mesma velocidade que me escalou, desceu, desbravou o mato e o perdi de vista.
MELHOR PODCAST - THIS IS BRAZIL
Sou um apreciador do podcast, enquanto mídia, de longa data.
Lembro de ensaiar o meu próprio programa por volta de 2007 com amigos da escola. O formato era simples: comentários “engraçados” intercalados de músicas que, para então, era uma emulação do rádio - o programa Pânico era uma referência involuntária - bastante corrente nos podcasts subidos no SoundCloud ou semelhante. Felizmente, sem meios de compartilhá-lo de forma efetiva numa internet engessada de blogs e comunidades de Orkut, a minha criação colegial se perdeu no tempo. Mas, infelizmente, o mesmo fim também chegaria a toda uma gama de podcasters que se aventuravam pela mídia durante a década de 2010 com formatos e qualidade muito mais interessantes do que a apresentada por mim.
Por certo, a podosfera brasileira passaria por uma longa penúria que condenava seus interessados a “fazer por amor” até que, para o bem ou para o mal, com a popularização dos mesacasts como Flow e Podpah, a promessa há muito não cumprida do “ano do podcast no Brasil” tomaria contornos de realidade.
Hoje, na podosfera, se encontra podcasters de todos os carismas, formatos para todos os gostos e uma riqueza de títulos em que podemos nos perder com a facilidade de um simples play. E talvez seja por essa mesma facilidade de se perder que demorei 5 anos pra encontrar esse podcast que, em 2024, ganhou meus ouvidos e coração.
This is Brazil é a junção de duas coisas que muito acalentam meu espírito: curadoria de áudios de whatsapp e o Brasil profundo (ou a estética “Brasil profundo”) que, distante das redes sociais higienizadas, demonstram a brasilidade em “seu estado puro” como a apresentação do próprio podcast descrimina.
Assim, semana sim semana não, Pedro Duarte e Nícolas Queiros tentam compreender as camadas contextuais que fazem um homem furioso proibir o envio de fotos de jumentos no grupo do zap ou como alienígenas curtiriam o carnaval de Olinda. Como afirmou Nícolas ao jornal Correio Braziliense:
"O primeiro objetivo é resgatar o Brasil de si mesmo. Está todo mundo de saco cheio desse Brasil, que nem é o Brasil real. A gente faz uma brincadeira que a data limite é 2014, que foi do 7 a 1, parece que é a data em que tudo começou a dar errado. Não é (um programa) de saudosismo, é só para dizer que tem tudo de ruim (no país), mas ainda tem essa coisa brasileira".
Com efeito, essa curadoria de áudios não é necessariamente nova na internet: o canal do YouTube “Papo Otário” sabia muito bem combinar esdrúxulas confissões de crimes da PEMERJ com cenas do anime JoJo Bizarre Adventure, por exemplo.
Com mais pluralidade de sotaques, menos demonstrações de abuso de poder e o adicional de comentários jocosamente afiados vindos da dupla que conduz o podcast (talvez algo que me lembra do meu projetinho lá de 2007), This is Brazil, contudo, tem a sua própria cara e lógica que se não te pegar pelo humor espontâneo do brasileiro zapzapzeiro com certeza te pegará pelo carisma dos apresentadores.
Se em 2024 o podcast pegou terceiro lugar no Prêmio Melhores Podcasts do Brasil, aqui na [MAGAZINE] levou Ouro.
MELHOR MEMÓRIA - DAMA-DA-NOITE
Abri a janela e o cheiro roçou meu nariz.
Em poucos anos, quem mais se lembrará daquele perfume na esquina da Rua Pedro Gomide Filho com a Avenida Olivia de Castro?
MELHOR SÉRIE - RESERVATION DOGS
A trama de Reservation Dogs gira em torno da vida de quatro adolescentes - Elora, Bear, Cheese e Willie Jack - que moram em uma pacata reserva indígena no Estado de Oklahoma. Com efeito, a serenidade da reserva impacienta os jovens que planejam, com o dinheiro de pequenos delitos, se mudarem para Los Angeles. Contudo, antes que o façam (farão?), somos apresentados a um mundo em colisão.
Se ser jovem nos Estados Unidos hoje já parece complicado, ser um jovem nativo-americano crescendo no país do Tio Sam tem ainda mais camadas: religiosidade, solidão, apego a terra, apreço a modernidade e toda uma gama de questões tratadas com muita profundidade mas também um bom tom humorístico por Sterlin Harjo, criador e showrunner da série.
Por certo, Reservation Dogs, que está completa na Disney+, é uma daquelas séries que o melhor é saber pouco ou nada antes de dar play e deixar uma imagem valer por mais que mil palavras.
Contudo, adianto: a música “Come and get your love” da Banda Redbone nunca mais terá o mesmo significado pra mim.
MELHOR FRACASSO - ANGU CREMOSO
Grandes e pequenos erros cometi esse ano, leitor.
Na vida pessoal, profissional, emocional.
Atravessei a rua quando não devia. Calculei errado sentimentos e o troco do mercado.
Escolhi livros pela capa.
Dormi brigado.
Se botei fé que sonhos antigos andariam a passos largos e me dei com muros intransponíveis, também deixei de regar meu pé de tomilho que quase morreu.
De uma seleção tão grande de fracassos, qual poderia ser o melhor?
Bem, um angu.
Culinária tem se tornado um hobby cada vez mais presente na minha vida. Com efeito, sempre que encontro um tempo livre, passeio entre perfis de culinária em busca de um novo sabor ou textura que possa por em prática aos fins de semana.
Assim, em meados de agosto, me dei com a polenta doce e peras ao vinho de Rita Lobo que - cabe aqui sem dúvidas um elogio à chef -, devido a didática de seu vídeo, facilitou e muito a reprodução do prato.
Comida no estômago. Sorriso no rosto.
Receita anotada no caderninho.
E o que vem depois?
Bem, com uma dispensa cheia de fubá e o sucesso da polenta doce, me veio a ideia de fazer um novo prato de angu, dessa vez salgado, que envolvia cogumelos, molho, ovo poche e palha de alho poró… e foi assim que transformei os meses seguintes de cozinha em um desastre atrás de desastre.
Primeiro que a farinha que compramos não é da instantânea como sugerida por Lobo, o que me fez subestimar e muito o tempo de cozimento de um angu (minha vó que sempre fazia é falecida há muitos anos, leitor, a memória pode ser enganosa). Depois, a proporção: para uma cremosidade razoável, a quantidade de água ou caldo precisa ser consideravelmente maior que a de farinha usada nas primeiras tentativas. Assim como a dosagem certa de manteiga na finalização.
Os cogumelos tiveram sua própria jornada. Mistura de Paris e Chitake, quantidades insuficientes para quantidades exageradas. E o molho que um dia feito ao caldo de porco ficou perfeito, no outro era só vinho e gordura.
No acabamento, o grande acerto foi, sem dúvidas, a palha de alho poró. Veja que este, no ponto em todas as ocasiões, leitor, nem estava na receita original, mas agregada no instinto. Já a feitura do poche me deu vontade de me defenestrar e saiu do prato na primeira tentativa só de imaginar a quantidade de desperdício que futuras tentativas frustadas trariam.
Mas afinal, como esse pode ser o melhor fracasso de 2024?
Pois me deu exatamente o que eu precisava. Espaço pra ensaiar. Errar, fazer de novo. Desistir de certas coisas. Agregar novas. Experimentar. Me entender na cozinha mas também me entender no geral.
Me permitiu ver que se por vezes tenho a impressão de ter falhado com vocês e comigo mesmo, em relação a frequência da publicação, com a publicação de pautas frias e deslizes tecnológicos, isso não precisa ser um problema. Não é um problema. Pois o objetivo da [MAGAZINE] nunca foi de entregar o assunto mais quente do momento ou ter a frequência impecável de um periódico jornalístico. Mas propor um espaço de diálogo onde coisas saem, outras entram. Onde o erro faz parte do acerto e o acerto do ensaio.
E cá estamos, ensaindo.
Tô doido pra ver essa série, acho que vou começar 2025 com ela.