I
Ocorreu numa quinta-feira.
O sol a pino fazia com que meus poros se abrissem e as minhas pernas se apressassem pelas tortuosas ruas de Viçosa.
Chegara à sempre familiar cidade havia poucos dias e, entre um afazer e outro, visitei o centro da cidade num par de oportunidades a fim resolver situações corriqueiras.
Naquela fatídica quinta-feira, contudo, não pretendia gastar muito do meu tempo batendo perna. Tinha outros planos: rever amigos, familiares; ouvir as cigarras; relaxar e, quanto antes, voltar-me sobre a obra do escritor Horácio Castellano Moya a qual havia adentrado por uma espiral estranhamente obsessiva após me propor a leitura de um único livro e a escrita de um texto breve e que descambou para uma pilha de notas, a leitura de 6 romances, a audição de alguns podcasts e a projeção para a escrita de pelo menos 2 artigos científicos.
O gracioso Destino parecia ter outros planos pra mim, pois, após escrever, entre uma calçada e outra, uma breve nota no celular, um simples escorregar de dedos fez com que o aparelho não parasse na segurança do meu bolso mas entre os afiados pedregulhos da rua.
Com uma tela espatifada e um touch inoperante, fiquei por volta de umas 3 horas em banho-maria esperando o conserto do aparelho. Tempo de sobra para filosofar, enquanto encarava o ritmo universitário da P.H. Rolfs, sobre a nossa atual dependência, enquanto sociedade, de um único aparelho para todas as funções práticas e triviais da vida.
Quer dizer, se antes ligávamos para outras pessoas com nossos telefones e fazíamos cálculos com nossas calculadoras, também assistíamos às nossas séries pela TV e ouvíamos músicas pelo rádio. Cada pequeno aparelho tinha sua própria função e se isso não era a coisa mais conveniente do mundo, pelo menos não perderíamos a única forma possível de nos comunicarmos/entretermos/trabalharmos caso um deles quebrasse.
O sol persistia em seu ardor.
Olhava para o relógio. Para as nuvens.
E quanto mais esperava, mais chegava a conclusão de que a vida, em coisa de 10 ou 15 anos, se tornou uma coisa muito mais abstrata, opaca.
A anedota da peça sobrando resumia bem a analogia para um meio de viver que parecia a pouco perdido: um garoto curioso, em um dia de ócio, decide desmontar um aparelho eletrônico como um K7 pelo puro prazer de entender seu funcionamento. Vê a mecânica do entrar e sair das fitas, o motor que rebobina, confere a pressão dos botões. Por trás da tampa do aparelho, poderia compreender a “mágica” que fazia sons e imagens saírem de uma fita magnética para sua TV. E na remontagem, uma peça esquecida debaixo do sofá sempre “sobrava” sem qualquer prejuízo ao funcionamento do aparelho por um ou outro motivo misterioso.
Não sou um grande fã de saudosismo, leitor.
O que refletia naquele momento de certo desespero - estava em outra cidade, sem acesso a meus contatos, contas bancárias, e-mails de trabalho e até mesmo as leituras que fazia no celular para não pesar demais as malas com volumosos livros - a troco de uma prévia conivência era apenas um vislumbre de que, naquela quinta-feira, tudo parecia ao mesmo tempo mais fácil e igualmente mais difícil de se solucionar: os celulares, monolitos que controlam nosso lazer/trabalho/relações interpessoais, são selados para garotos curiosos. Mesmo que possa passar horas grudado em sua tela, o seu real funcionamento - do processamento de dados ao algoritmo fornecido pelas bigtechs - não é algo que um garoto com uma chave de fenda possa compreender de forma simples.
De fato, nem especialistas grandinhos parecem conhecer todas as nuances dessa tecnologia, afinal, passadas 3 horas de espera, ao me devolver o aparelho com um novo cristal, o técnico que havia consertado meu celular também o devolveu resetado por “acidente”. Ou seja, limpo de todas as notas que eu havia cultivado no último mês sobre o hondurenho Castellanos Moya bem como dos meus planos de escrita.
O sol se curvava no horizonte.
Mas o tempo, por um momento anônimo, não mais passava.
II
Há algumas edições atrás, falei aqui sobre a bibliofilia de Umberto Eco.
Na ocasião, estranhei o tom apocalíptico (termo criado pelo próprio Eco para se referir a intelectuais que negam determinados produtos de massa afim de criar uma falsa sensação de pertencimento elitista dentro da própria cultura de massa) que o bibliófilo atacava os e-books, principalmente se consideramos o seu fetichismo desmesurado pelo códice - entretenimento popular desde o século XVIII no capitalismo vigente - que o levou a colecionar mais de 40 mil volumes, entre raros e raríssimos livros. Também na ocasião, concordei sem medidas com a afirmação do mestre italiano de que o livro, tido na sua concepção como uma memória vegetal, “é um seguro de vida, um pequeno adiantamento sobre a imortalidade”.
Mas o que seria, em miúdos, a dita memória vegetal?
Segundo sua perspectiva,
O cérebro humano possui, desde o início dos tempos, uma memória orgânica e outra mineral, registrada em pedras e tábuas de argila. Junto com eles, paralelamente, desenvolveu-se outra memória mais profunda, silenciosa e revolucionária: a memória vegetal, impressa em papiros e trapos até chegar ao papel da árvore que hoje conhecemos. Seu instrumento de sobrevivência é o livro, objeto de amor e devoção durante séculos.
Tecnologia “simples” mas de uma eficiência ainda hoje magistral. Feita para durar, o próprio Eco relaciona metaforicamente sua resistência ao tempo ao design de uma colher: desde sua invenção, quantos novos tipos de colher precisaram ser inventados?
O que ganharia tração em nossa sociedade, entretanto, com o século XXI, não é a memória vegetal, mas a memória mineral que, en passant, também discorre o mestre:
E se os primeiros ideogramas, caracteres cuneiformes, runas, letras alfabéticas tinham suporte mineral, a memória mais atual, a dos computadores, cuja matéria-prima é o silício, também tem suporte mineral. Hoje em dia, graças aos computadores, temos uma memória social imensa: basta conhecer os métodos de acesso às bases de dados e, em qualquer caso, poderemos obter tudo o que necessitamos saber; sobre um único tema, uma bibliografia de dez mil títulos. Mas não há silêncio maior do que o ruído absoluto, e a abundância de informação pode gerar uma ignorância absoluta. Diante da imensa memória que os computadores podem nos oferecer, todos nos sentimos como Funes: obcecados por milhões de detalhes, podemos perder qualquer critério de seleção. Saber que existem dez mil livros sobre Júlio César é o mesmo que não saber nada: se me tivessem recomendado um, eu teria ido procurá-lo; Diante do dever de começar a explorar esses dez mil títulos, não continuo mais.
Se fora afiada a visão do mestre, no alvorecer do século da memória mineral, quanto a banalização da informação, ao contrário do que imaginou Eco, contudo, esse fenômeno não nos paralisou como a Funes - inerte frente os mínimos detalhes memorizados - mas, em via oposta, agilizou a desmemorialização da sociedade em tempo recorde.
Longos emails de trabalho, flertes em diferentes DMs, fotos de paisagens, leituras ligeiras, comentários raivosos ou engrandecedores, tweets rascunhados e nunca enviados, enfim, fragmentos de nossas vidas, memórias, se tornam, no século presente, poeira de silício com certa facilidade.
Nas areias desse tempo, nos vemos obrigados a viver num eterno presente em que, por um lado, o story desta manhã é tão velho quanto as runas que gravaram Gilgamesh em tablets de argila e, por outro lado, a ânsia do próximo acontecimento - a notificação do whatsapp, o meltdown de uma subcelebridade ou a tentativa de golpe na Koreia - exige a eminência se realizar, sempre, do próximo segundo.
E com a mesma facilidade que criamos pilhas de bytes, nos desfazemos delas.
Quer dizer, pouco importa se voluntariamente deletamos tudo da nuvem ou, por um erro qualquer, perdemos o acesso daquela rede social mofada que já não usamos. Amanhã sempre surge um novo Koo e com ele uma nova oportunidade de criar bytes de takes sobre monogamia ou a polêmica cor de um vestido.
O problema se converte exponencial, não obstante, quando essa banalização passa de um simples descaso individual e se torna uma ativa politica institucional daqueles que, senão obrigados a salvaguardar a História Cultural, ao menos seriam os poderosos o suficiente para realizá-lo.
III
Durante a década de 2010, com a morte da mídia física e a ascensão das plataformas de streamings - para livros, filmes, músicas, noticias e tudo mais que há sob o sol -, muitos discorreram sobre a facilidade de acesso a um mundo cultural antes inalcançável para as massas e que até mesmo tornaria obsoleta a pirataria.

O que poucos pareciam ver no horizonte, contudo, era que, em uma única década, a quebra das politicas antitruste que permitiu o surgimento desse novo modelo de negócios - no qual a mesma empresa que detém a produção também possui a distribuição e pontuais locais de exibição - entregou a totalidade de importantes acervos artísticos, culturais e intelectuais para grupos que não possuem grandes compromissos com estes para além dos financeiros.
Nesse sentido, cortes como feito pelo streaming Max, que retirou permanente mais de 36 produções de seu catálogo para não pagar residuals (compensações financeiras pagas aos atores, diretores de cinema ou televisão e demais envolvidos por reprises ou licenciamento para streaming), e até mesmo o arquivamento de filmes inteiros a troco de desconto em impostos tem se tornado prática comum nas produtoras cinematográficas como tem noticiado os jornais especializados que também reportaram as mesmas práticas vindo da Disney plus e Hulu.
Já no mundo dos jogos, a situação parece ainda pior visto que toda a indústria tem migrado para um modelo de negócios em que o jogador nunca é realmente dono da cópia que adquire e pode ter o jogo removido de sua biblioteca pessoal a qualquer momento por um capricho da empresa detentora do título.
O valor da memória se tornou literal, cobrado em visa ou mastercard e revogado quando deixa de ser lucrativo. E nessa nova realidade não há sebos ou bibliotecas públicas que possibilitem o retorno da circulação das mais medíocres às mais clássicas obras de arte. Em outras palavras, ao contrário do livro, que conserva e é conservado pela memória vegetal, mas também tem a capacidade de se proliferar como flores e folhas que ganham o mundo, a memória mineral deste século parece mais um único e monopolizado monolito no qual, longe de todos, brilhante apenas o suficiente para capturarmos seu obtuso reflexo em nossos inócuos espelhinhos pessoais…
E que acende sua tela.
Pede senha.
Ainda é quinta-feira.
Olho as nuvens em busca de uma lembrança.
E suponho que tenho isso anotado em algum lugar.
IV
“Bem-vindo de volta, Diego”.