Eu tirei férias.
Para os não familiarizados, não existe férias para pesquisadores no Brasil, o que significa que por quase uma década, ao invés de ir para praia e relaxar como todo mundo, eu ia às praias e tinha minha cabeça enterrada em autores, conceitos e pequenos detours burocráticos.
Mas nesse fim de 2023 e começo de 2024, não obstante, eu tirei férias.
Pode parecer estranho, mas não fazer nada exige uma expertise que eu não tinha ou recordava. Com o passar das semanas, contudo, fui relaxando os músculos e a mente para entrar no mood certo.
Dedico essa edição de IMPRESSÕES E INDICAÇÕES, então, para alguns colírios desse período.
COMER
Há alguns anos tenho me dedicado, com certa intensidade, a culinária.
Me criaram, desde a adolescência, para saber o básico. Fazer arroz, feijão. Fritar um ovo e batata.
Desde que ingressei na universidade, conhecendo novos pratos com amigos, namoradas e conhecidos, a expansão do meu paladar foi me empurrando mais e mais para dentro da cozinha.
A princípio, como um bom gourmet de fim de semana, experimentei com alguns molhos, carnes e massas. Posteriormente, ao criar uma mínima rotina de preparos que exigia utensílios nunca havia tocado até então, ganhei novos truques. Com o tempo, entre elogios e críticas, fui construindo algum repertório que, dentro do cabível, me parecia razoável se não para ser chamado de “bom cozinheiro”, ao menos para meu próprio paladar.
Tudo isso mudou com as minhas férias e alguns dias que pude passar com a minha irmã mais velha.
“O fruto não cai muito longe do pé”, diz o ditado. O que o ditado não diz, porém, é que, enquanto alguns desses frutos se achavam pela qualidade de seus Muhammara, outros fazem seus próprios e deliciosos pães e panetones do zero. Mas não só isso.
Focaccias, grissini, pizzas; lombo recheado, peru, frango; tortas, doces.
A fartura e a qualidade de tudo que pude comer foi algo que só não carrego com mais carinho do que o conhecimento também servido pela minha irmã. Afinal, em 1 semana, eu tive praticamente um curso intensivo sobre pães, com direito a trazer um levain na mala que já virou pizzas e projetos futuros.
DORMIR
Nasci, como a maioria que me lê, chorando. E continuei, como um bebê, chorando por vários motivos e meses: fome, sono, barulhos altos, muita luz, pouca luz e mais uma infinidade de coisas que costumam tirar a paz a um infante e, por consequência, aos seus pais.
Minha mãe, contudo, faz circular nas prosas familiares a história de como, por um ano inteiro, eu chorei sem conseguir dormir.
Chorava. Gemia. Esperneava. Sempre que chegasse o período da noite, um sono se apossava de mim que só não era maior do que algum tipo de incomodo que me deixava desperto e irritado por toda a madrugada.
Contudo, no meu exato aniversário de 1 ano de idade, o problema se resolveu. Minha mãe me colocou no berço e, sem esforços, logo estava nos braços de Morfeu.
Desde então, dormir tem sido um longo e profundo prazer.
Depois do meu primeiro ano de vida, já perdi madrugadas a fio na correria de prazos, textos e banais testes se sou um alienígena ou não. O dano foi feito na vida adulta, porém, sempre foi algo consciente. A perda do luxo de uma boa noite de sono e sonho (sendo um alienígena) era sentida a cada manhã.
É estranho notar, inclusive, como damos pouco valor para esse ato que é provavelmente o contato mais mágico que nós, seres racionais de uma sociedade tão avançada, preservamos coletivamente de tempos imemoráveis da nossa história: sonhar.
Já disse um intelectual - que não serei capaz de citar por nome - que esse desprezo pode ser associado exatamente ao fato de sermos seres racionais de uma sociedade tão avançada e que está eternamente em busca de uma produtividade nauseante. O sono, o sonho e seu respectivo descanso são, nessa lógica, precisamente as únicas coisas que não podem ser tomadas como produtivas.
Pois, nas minhas primeiras férias em muito tempo, me deleitei nesse ato: dormi bem. De noite, com sonecas pela tarde, depois do almoço. Antes e depois de uma longa viagem.
LER
É possível que você que me lê e igualmente trabalha, em algum grau, com literatura já teve esse sentimento: ler pode ser um fardo.
Há anos que a leitura em minha vida tem se desassociado de uma prática descompromissada, alegre e individualmente frutífera. Por efeito, paulatinamente a mesma se tornou cada vez mais uma função laboral que, se pode proporcionar algum prazer, este é o mesmo regozijo que entregar um relatório a tempo ou, em um caso extremo, descobrir que amanhã é feriado e ponto facultativo.
Esse efeito proletarizante da leitura, inclusive, perpassa as parcas fronteiras que, em nossas cabeças, fazemos de “lazer” e “trabalho”. Nem consigo contar a quantidade de leituras que, ao longo dos anos, me eximi de qualquer compromisso acadêmico mas que, com o tempo, formava pequenas ideias que iam fermentando entre as orelhas, se misturando com micróbios de pós-estruturalismo e crítica weberiana para, enfim, virar espirros e arrotos intelectuais em um ensaio ou uma ementa de aula.
Ao longo desse 1 mês e pouco que não estive em sala de aula ou matutando um novo texto, contudo, resolvi desenterrar ler livros que estavam na minha leitura de desejos há anos. Começando pelos curtos (até 60 páginas) e de literaturas pouco exploradas no meu lattes (francesa, russa), fui me dando espaço para uma leitura sem grandes compromissos.
Nem todos eram bons livros, digo. Mas me dei conta que apesar da qualidade dos livros o prazer da leitura não tinha sido desagradável.
Quando me desobriguei de todo de fichar cada palavra de uma página de soft pólen, o hábito tomou outro contorno e, já nesse final de fevereiro, li 1 terço de tudo que consegui ler, minuciosa e dolorosamente, no ano passado.
Tal como estou reaprendendo a não fazer nada, também estou tirando um peso das minhas leituras que fluem a cada dia.