I
É 08 de fevereiro de 2025.
Quiabo, arroz, tropeiro e porco fazem meu prato no restaurante self-service do centro de Belo Horizonte.
Na TV ligada no canto do estabelecimento, o noticiário repercute a chegada do “segundo voo com brasileiros deportados dos Estados Unidos neste novo mandato de Donald Trump em Confins”.
Identificados por nome e sobrenome em entrevista após beijar o chão de BH, os repatriados contam suas histórias, suas expectativas e seus sofrimentos.
O texto abaixo foi publicado pela primeira vez em 30 de dezembro de 2018 no Medium. A versão atual possui algumas modificações de ordem sintática e de diagramação.
II
É 28 de dezembro 2018.
À mesa do almoço tipicamente mineiro, os assuntos são dos mais cotidianos: o preço do tomate, as iguarias da Indonésia e o — nem primeiro, nem último — imigrante morto ao tentar atravessar a fronteira dos Estados Unidos. O agravante da vez, que fez o caso se tornar manchete, é o fato desse latino-americano ter apenas 8 anos de idade quando morto numa infeliz noite de Natal às mãos da polícia de controle fronteiriço.
- Mas seu Tanim, esse negócio com imigrante não é de hoje — argumenta o familiar que, como o eleito militar brasileiro, parece compreensível ao ditos do apresentador de TV americano que comanda o atual reality show Estados Unidos da América.
E é fato.
Entre o revezamento de democratas e republicanos, pouco mudou. No entanto, o que chama à atenção para esse diálogo que ocorre entre a carne de porco, o xuxu refogado e a previsão de chuva, é exatamente que esse acontecimento, tão rotineiro em anos Obama, Bush, Clinton, Nixon…, volta às mesas de almoço domingueiro brasileiras em 2018.
Me explico.
III
É 14 de março de 2005.
A odisseia de Sol em realizar o american dream estreava em horário nobre e, por mais recriminável que seja a cultura popular das telenovelas de então, América parecia refletir o desejo comum a qualquer brasileiro daqueles anos 2000, isto é, recém-saídos da miséria do Terceiro Mundo com a lenta, mas esperançosa, entrada do país no status de “em desenvolvimento”, passamos, como Sol, a aspirar por voos mais altos que a Fome Zero.
No novo horizonte, o conforto e brilhantismo do greatest country in the world não eram apenas um delírio, mas uma possibilidade.
Se naquele longínquo ano de 2005, acompanhamos a intrincada trama criada por Gloria Perez - com o amor entre Sol e Tião, o temido boi Bandido que aterrorizada os rodeios, assim como o alívio cômico de Carreirinha e a falsa santa Creuza -, também acompanhamos a história de imigrantes encontrados dentro de painéis de carro, o número recorde de brasileiros capturados na fronteira norte-americana - ao menos 17000 - e tantas outras complexas narrativas da imigração latino-americana aos Estados Unidos, sempre simplificadas pelo telejornalismo nacional.
Com o fim da novela, no entanto, a receita para a chegada ao solo “americano” parecia se revelar não mais na ilegalidade da imigração clandestina, como optou Sol, mas na vida prospera de brasileiros talentosos que, como Tião, habilidoso pião de Barretos, pôs os pés nos Estados Unidos à convite de competições internacionais.
E assim seguimos.
Veio a facilidade do crédito, a carne de porco, o alargamento da classe média, a baixa do preço do tomate, o G20 e os passeios em Orlando: O G1 registra que não somente o “Número de turistas brasileiros nos EUA cresce 15% em 2013” como estávamos “entre os que mais gastam dinheiro por lá”, isto é, o american dream da realização financeira se metamorfoseou em Disney e iPhones mais baratos.
Já não era necessário sair do país para se viver bem.
- “Aqui eu não fico!”, esbraveja a recém-casada brasileira no filme The Florida Project (2017) ao se deparar com o motel que teria de ficar em sua estadia nos Estados Unidos. Enquanto a moça dá seu show, o marido tenta argumentar com o gerente: “- Ouça, você vê minha esposa? Ela é brasileira. Eles adoram este lugar. Ela vem aqui desde que era criança e seu sonho era ter sua lua de mel na Disney”.
IV
Ainda é 28 de dezembro 2018.
Tomo um gole de Glacial, me sirvo de mais um bife.
- Eu tinha amigo que foi pra lá, seu Tanim, trabalhar dessas coisas que eu faço, que você faz, mas que os americanos têm vergonha de fazer e tava tirando um dinheiro bom. Aí quando caiu as torres gêmeas teve que voltar — é fato.
Também é fato que essa criança, morta em 25 de dezembro de 2018, não tem sequer nome para a imprensa bem como é fato que, após poucos anos de políticas austeras, a miséria voltou a crescer no Brasil.
- Come mais um pouco, menino. Aqui, toma um gulim.
Ainda não é 2019, mas com um novo ciclo político, mais severo, a promessa de futuro é ainda mais desoladora ao brasileiro que sonha por uma vida melhor.
- Precisa não dona Hilda, to satisfeito.
Talvez a mídia volte a dar nomes, sobrenomes e nacionalidade às crianças mortas na fronteira americana.
- E o preço do alho, einh? Cê viu?
- Caro, né? Mas e o nome do menino, da fronteira, alguém sabe?