I
Durante a década de 1960, o então diretor do semanário literário Marcha Ángel Rama, tal qual uma grande parcela de intelectuais latino-americanos, viu na Revolução Cubana de 1959 um marco histórico tanto na luta contra a dominação política e econômica do imperialismo estadunidense quanto uma luz para o fim da dependência cultural e intelectual europeia. Em sua perspectiva, a importância da Revolução demonstrava ser possível escapar de uma cega importação e adoção de epistemologias e práticas ocidentais - fossem elas o liberalismo ou técnicas literárias -, como faziam seus conterrâneos do subcontinente, e moldar a realidade latino-americana por mãos próprias.
Essa afirmação, como se pode antever, não fazia de Rama automaticamente um marxista. Já em 1975, por exemplo, o uruguaio publicaria um texto de nome “Sistema literário e sistema social na América Hispânica” numa coletânea de claro conteúdo revolucionário intitulado Literatura e praxis na América Latina. Ao contrário de seus pares, Rama destoaria ao dizer que o marxismo também era uma metodologia de “evidente origem europeia” e que esta, apesar de contribuir para um “progresso da crítica literária”, por não ser um instrumento próprio e adequado para nossa realidade, poderia “distorcer a apreensão da cultura literária do continente” tanto quanto o new criticism ou o estruturalismo francês.
Nada disso parece ter impedido o governo americano de deportar, em 1982, o então acadêmico e exilado Rama - dada a nefasta ditadura instalada no Uruguai na década anterior -, que lecionava sobre literatura latino-americana nos Estados Unidos a convite da Universidade de Maryland, por ser um comunista subversivo.
A situação, kafkiana, previa uma defesa meramente burocrática no trâmite em que Rama não sabia bem do que estava sendo acusado ou como se defender, algo que rendeu uma situação sem precedentes e que fora chamado na imprensa da época de catch-28 (em referência ao livro Catch-22 de Joseph Heller) como escreve José Eduardo González:
Olhando para o código carimbado no visto de Rama, 212 (d)(3)(A)(28), um funcionário do Consulado Americano em Barcelona explicou que o número 28 significava que Rama era considerado um “subversivo comunista”. Foi uma classificação dada pelo ato McCarran-Walter de 1952, cuja seção 212 (28) forçou o INS a negar vistos a estrangeiros que “defendem as doutrinas econômicas, internacionais e governamentais do comunismo mundial” a menos que um foi concedida a dispensa (Lei de Imigração e Nacionalidade).
De kafkiana a dostoievskiana, a história do uruguaio ainda teria um final trágico e prematuro logo em 1983 quando, exilado então na França e bastante abatido com a situação de sua deportação, Rama sofreria um acidente aéreo que o mataria.
A sua obra, pelo contrário, segue viva e o intelectual é, quem sabe, um dos maiores latino-americanistas de todos os tempos. Mas as consequências, bastante reais, dessa mesma escrita, sobre papel, parecem ter levado a vida de Rama a um infindável exílio e penúria pessoal: “Ao despertar, comprovo, sem muita satisfação, mas com surpresa, que ainda existo” diria o crítico, melancólico, em uma anotação de seu Diario que, com certeza, encontra ressonância em outras ao longo dos 9 anos registrados nele, todos em exílio.
Afinal, será que vale a pena se colocar esse catch-28? Ou, quem sabe, se os tempos mudaram? Estamos em um momento em que a liberdade intelectual e política se tornaram mais forte, como Rama imaginou há 50 anos, e, mesmo não sendo um dogmático ou revolucionário, é possível expressar uma opinião ou uma tese aquém do determinado pelas forças no poder?
II
Em 1988, o escritor indiano radicado na Inglaterra Salman Rushdie publicou o seu livro mais célebre, Versos satânicos. No plot, “Dois homens caem do céu para a terra, depois que terroristas explodem o avião em que viajavam. Ambos são indianos e atores. Ambos chegam incólumes ao solo da Inglaterra e se metamorfoseiam - um em diabo, outro em anjo”; na arqui-estrutura, Rushdie incorporou ao seu livro referências a um grupo de versículos do Alcorão além de vários elementos da fé muçulmana, inclusive a figura de Maomé, que o autor trazia de sua origem oriental.
Enquanto obra literária, Versos satânicos fora bem recebido: foi best-seller, finalista e vencedor de prêmios. Enquanto ato político, Versos satânicos fez o suficiente para enfurecer tanto muçulmanos pouco poderosos - que queimaram publicamente o livro na Inglaterra - como grandes líderes do islã. De fato, do segundo grupo, veio uma fatwa, em 1989, do aiatolá Ruhollah Khomeini, líder religioso e político do Irã, decretando a morte Rushdie sob a mão de qualquer muçulmano que se dignasse a ceifar o blasfemo. Fatwa essa que colocou uma sombra de morte sobre a cabeça do autor por 33 anos. Na semana passada, essa sombra por fim parece ter se desvelado à luz dos fatos e da forma mais monstruosa possível.
Esfaqueado várias vezes por um jovem de 24 anos no dia 12 de agosto de 2022, Salman Rushdie segue em estado crítico após ter seus nervos do braço, fígado e olho dilacerados.
50 anos se passaram desde que Rama imaginara um mundo melhor. Curiosamente, a literatura pela qual ele viveu e escreveu enquanto vivo e hoje vive Rushdie não tem nem de perto o resplendor daqueles anos, seja em relevância cultural ou em números de mercado. E mesmo assim, paradoxalmente, seguimos vivendo num mundo onde há pessoas dispostas a viver e, assustadoramente, matar pela literatura.
Catch-28.
Virão anos melhores? É possível imaginar e escrever - literariamente, inclusive, por que não sonhar? - sobre um futuro em que a expressão literária e intelectual, a troco de um legado, não condenem uma pessoa a uma vida de martírio?
III
20 de junho de 2022. Após novas ameaças golpistas do execrável que governa o Brasil, compartilho meu receio sobre um vindouro fim da democracia no país em um pequeno grupo de amigos que, naturalmente, compartilham do desgosto pelo atual governo e o pestilento na cadeira da presidência.
Para minha surpresa, no entanto, meus amigos me acharam de alarmado e se formou uma espécie de consenso entre os presentes de que “tem muito desdobramento possível ainda” e, apesar de tudo, “um golpe é improvável”.
Claro que ainda tem muitos desdobramentos possíveis e claro que, se fosse da minha vontade pessoal, um golpe nunca aconteceria nesse país. Mas o medo que permeia a possibilidade de tal fatalidade, pouco a pouco, cerceia meus atos e liberdades: uma cor de camisa, um like em uma publicação, um tweet descontente, uma assinatura em uma carta em favor da democracia.
Foi apenas numa segunda conversa, já mais recente, com o meu amigo Murilo Medeiros, que me dei conta do porquê do tom destoante daquela outra prosa: aquele grupo específico de amigos - uns engenheiros, outros técnicos ou funcionários de empresa internacional -, independente de sua posição política, não vive de sua intelectualidade; o meu trabalho, ao contrário, é escrever uma tese de doutorado sobre a história da teoria da narrativa na América Latina e, nesse percurso, como marxistas e comunistas das décadas de 1970 e 1980 tentaram criar uma teoria própria para analisar e compreender o fenômeno literário latino-americano. Como Rama, pouco importa se eu faça críticas ou concessões a esses trabalhos na minha tese. Se houver golpe, como lerá o novo governo um texto que traz em seu interior o termo “Revolução Cubana”?
Catch-28.
É possível imaginarmos um futuro melhor?
E futuro melhor ou não, é possível fugirmos da História?
É possível fugirmos de quem somos?
Um forte abraço e até breve,