Caro leitor,
Se você fosse convidado a adentrar em meu lar, provavelmente veria alguns quadros na parede da sala de estar, as plantas que se acomodam em todos os cômodos da casa bem como a forte luminosidade da janela espaçada do quarto.
Tomaria um café passado na hora, talvez comesse algum quitute com queijo e, por algumas horas, poderia trocar um dedo de prosa sobre, vai saber, a tabela do brasileirão ou a última do Kendrick Lamar na sempre quente capital mineira.
Contudo, se já fosse familiarizado com a vida e hábitos de seu anfitrião, talvez notasse, com algum espanto, que para além das duas prateleiras instaladas na cozinha e a que se encontra na sala de jantar - suportando temperos, pratos e demais utensílios domésticos -, a casa não dispõe de nenhuma biblioteca visível que dê aos visitantes qualquer vislumbre dos supostos hábitos leitores de um professor de literatura.
O motivo de tal ausência não vem, te digo leitor, de qualquer resistência a sedução fetichista de uma biblioteca pessoal abarrotada de livros.
Eu, sem dúvidas, possuo livros: entre uma pilha maior, que ainda reside na casa dos meus pais, e outra, bem menor, escondida aos olhos de visitantes, dentro de uma gaveta em minha casa, tenho caros volumes a minha pessoa como alguns presentes que ganhei justamente por publicar essa newsletter e outros que fizeram parte essencial da minha história como pesquisador e leitor.
Por outro lado, como qualquer um, também me abismei com aquele clip que, há alguns anos, circula pela internet com o escritor, professor e semioticista italiano Umberto Eco caminhando vagarosamente pela sua biblioteca pessoal de mais de 30 mil volumes:
Mas a verdade é que o fato destes poucos livros que tenho a disposição residirem em minha gaveta e não num lugar de suposto prestígio (ao lado de copos e uma coqueteleira) me parece muito mais frugal do que uma firme posição ideológica.
Afinal, talvez por ter lido Eco, compreendi que a bibliofilia não é para todos: o próprio Eco parecia consternado na maioria de seus textos que tratou do assunto, como A memória vegetal (2010) e Não contem com o fim do livro (2010), ao expor seu entusiasmo por livros - que incluía estranhos momentos de se gabar por ter os raros livros x ou y1 - e um aparentemente desinteresse de terceiros pelos mesmos2.
Veja, não discordo da importância que Eco faz do surgimento do livro enquanto tecnologia - a “memória vegetal” - e da leitura como processo essencial na própria compreensão e preservação humana. Isto é, nas palavras do próprio:
O livro torna-se a tal ponto um símbolo da verdade que guarda, e que revela a quem sabe questioná-lo, que para resolver uma discussão, afirmar uma tese, derrotar um adversário, se diz: “Está escrito aqui ." Sempre duvidamos da nossa memória animal ("Parece que me lembro disso..., mas não tenho certeza") e, em vez disso, exibimos a memória vegetal para dissipar todas as dúvidas: "A água é realmente H 2 O, Napoleão realmente morreu em São Helena, a enciclopédia diz isso”. (…) Naturalmente, os livros podem nos induzir a lembrar também muitas mentiras, mas tem a virtude, ao menos, de contradizer entre eles e nos ensinar a valorizar criticamente as informações que nos oferecem. Ler ajuda também a não acreditar nos livros. Ao não conhecer os delírios dos demais, o analfabeto não conhece nem mesmo seus próprios direitos.
Enfim, acredito fielmente que o livro, como postula o mestre italiano, “é um seguro de vida, um pequeno adiantamento sobre a imortalidade”.
E no entanto, ao contrário de Eco, tenho muita dificuldade em fazer o salto epistemológico de acreditar no poder do livro, que pode muito bem residir numa biblioteca pública ou num acervo digital, para gastar milhares de reais numa parede de lombadas coloridas que enfeitariam minha casa, desinteressariam meus visitantes e, sem querer, me enfezariam com perguntas que aparentemente não são exatamente o que eu queria ouvir.
De fato, chega a ser curioso como o sarcástico Eco que tanto criticou os “apocalípticos” e seus conceitos fetiches na década de 1960, se utilizou ele mesmo, no século XXI, de conceitos teóricos complexos para atacar o livro digital e os supostos jovens desinteressados pela leitura enquanto defendia o caro coleccionismo fetichista não muito diferente, a nível de análise individual, de nerds “integrados” com seus funko pops e cartas de Magic.
Afinal, se algo aprendi com o mestre de Apocalípticos e Integrados (1964) foi que os fetiches da cultura de massa, como uma entrada para um jogo do Cruzeiro, podem pesar, no bolso e na mente de alguém, tanto quanto a necessidade apocalíptica de comprar um grande clássico da literatura (retocado pela mais nova e descolada editora do mercado editorial que adicionaria ao volume panfletos, pop-ups, tradução comentada pelo professor-influencer e outras parafernálias) e pô-lo a mostra para suas desinteressadas visitas fazerem estúpidas perguntas.
E na disputa de um Clássico contra um Clássico, se for convidado a entrar em minha casa, saiba, de adianto, que a memória vegetal escrita nos gramados de Minas Gerais, em páginas heroicas e igualmente imortais, vai se sobrepor ao penduricalho na parede.
Um forte e celeste abraço,
“Encontrei nas minhas prateleiras dois Aristóteles do século XVI, comprados por curiosidade na minha juventude e que (vendo o preço escrito a caneta pelo buquinista na folha de rosto) me haviam custado algo como 2 euros de hoje. (…) Um dia encontrei no Kraus, em Nova York, um antiquário de grande tradição (que infelizmente fechou há alguns anos), o De harmonia mundi, de Francesco Giorgi, um livro maravilhoso impresso em 1525. (…) comprei-o por um quinto do preço pedido em Milão. (…) Fiz outro bom negócio na Alemanha.”
“À pessoa que entra na sua casa pela primeira vez, descobre sua imponente biblioteca e não acha nada melhor para lhe perguntar a não ser: ‘Você leu todos?’, conheço várias maneiras de responder. Um amigo respondia: ‘Mais, cavalheiro, mais.’"
os novos retoques dos antigos clássicos pelas editoras estilosas e ultra modernas, ao que me parece, se deve ao fato das pessoas, aparentemente, necessitarem de MAIS que o próprio livro. "Como assim esse livro não vem com poster, ecobag, mapa do tesouro, segredo da vida e um pin?" haha
A minha maior (melhor) biblioteca está instalada no que chamo de banqueta da insônia, ao lado da cama, que me acompanha enquanto ensaio o sono. Texto bom demais, Diego ;)