IMPRESSÕES
CHUVA
Em uma tarde abafada dos anos 90, fiz chover.
Suponho que tinha por volta de 6 anos de idade. Pouco me recordo em questões cronológicas daquele período. Tudo se mistura numa grande névoa onde tazos, brigas de soco e voltas pelo parque Ibirapuera convivem com bolos de aniversário das tartarugas ninjas e choros esporádicos relacionados a pré-escola.
Da névoa, contudo, me vem essa imagem. Numa tarde cálida de Francisco Morato, um bando de garotos já meio amansados pelo sol, batendo em latas, dançando com gravetos e cantando frases sem sentido à Natureza, a fim de clemência em forma de chuva.
Éramos por volta de 5 garotos da vizinhança. Além de mim e meu irmão, pouco me recordo de meus companheiros. De quem fora a ideia, inspirada claramente em povos indígenas e suas danças à chuva, também não saberia dizer.
O que sei dizer é que, ali, numa construção que se avultava no bairro, achamos os instrumentos necessários para fazer nossa algazarra: tambores, cajados, baquetas.
E com eles, para nosso espanto e admiração, de fato fizemos chover.
Como termina a história? Não sei. Talvez uma mãe tenha gritado da janela para que os pivetes saíssem da chuva. Talvez voltássemos nossa atenção, uma vez mais, a tazos e brigas de socos.
Pouco importa.
O que posso dizer é que aquele foi provavelmente um dos primeiros momentos em minha existência em que pus a prova o senso de magia que nasce com toda criança.
E pela magia não fui decepcionado.
Ao menos não naquele momento.
Claro, a vida caleja.
O gás que acaba no meio do almoço. A nota da prova que é insuficiente. A infeliz engrenagem da burocracia que te faz voltar amanhã. O abismal destroçamento do meio ambiente que queima a diário - como vejo todos os dias, literalmente, a caminho do trabalho.
As pequenas e as grandes coisas da vida, dentro e fora de nosso controle, vão se acumulando em uma pilha de descrença que, quase a completo, parece soterrar o simples “acreditar”.
Tudo se torna racional.
Inclusive o desgosto pelo almoço frio, pela prova que tem de ser refeita, pelo voltar amanhã na partição pública, ou, até mesmo, ver a vida queimar e se manter inerte, preso as ninharias kafkianas.
No entanto, se torna impossível seguir racionalizando o mundo quando não se pode, literalmente, respirar.
Pois veja que, após quase 5 meses de seca em Belo Horizonte, que bateu recorde de um dos piores ares do mundo, voltou a chover nesse mês de outubro.
Como Villaça, presenciei esse estranho retorno a magia da vida.
Da minha própria janela, olhava a chuva e os as pessoas em suas janelas.
Na minha cabeça, lavava-se, pelo menos momentaneamente, os prazos semanais e os boletos a serem pagos. E aos poucos, de uma névoa mental, recordava daquele momento quase imemoriável em que, com amigos do bairro, fiz chover.
Um tempo distinto.
Brumoso.
Não sei se a chuva é “como se fosse algo mágico”.
Penso agora.
Mas o próprio mágico.
INDICAÇÕES
[ÁLBUM] DOECHII - ALLIGATOR BITES NEVER HEAL (2024)
Doechii, há algum tempo, esteve justo ali, no meu cotidiano musical: entre uma colaboração com a SZA (“Persuasive”) e outra com Janelle Monáe (“Phenomenal”), também entrou num remix de Isaiah Rashad (Wat U Sed) que por meses escutei entre a academia e o trabalho.
Curioso pensar que certas descobertas pessoais não são tão descobertas assim. Sempre estão ali, a postas, para que o olhar antes cansado, de súbito, possa com elas se dar em vistas novas, renovadas.
O súbito, no caso de Doechii, seria outra colaboração.
Smino, rapper com ligações com o próprio Isaiah Rashad, Saba e o mais conhecido J.I.D., começou a aparecer regularmente em minhas visitas à smartfit por volta do mês passado. E assim, “Pro Freak”, música de 2022 entrou em rotação (diria que é a essa música é a indicação dentro da indicação).
Na música, o talento de Doechii destoa tanto no rap puro e simples, com flow rápido e cadenciado, como quando ‘canta’, no refrão, sobre seu gosto por mulheres cremosas - tema cliché para o gênero mas nem tanto para uma rapper bissexual - de modo que, se você for nos comentários na música oficial do Youtube ouvirá um uníssono:
“Doechii absolutamente arrasou com seu verso!!! Eu nunca tinha ouvido falar dela até agora e já posso dizer que sou fã”.
Do mês passado a este, contudo, é possível que você também, leitor, já tenha ouvido falar de Doechii. Afinal, a mesma colaborou no novo álbum de Katy Perry “inaugurado” no último Rock in Rio.
E provavelmente seguirá ouvindo seu nome, pois, o que a rapper - que no mês de Dezembro estará no Afro Punk Experience em São Paulo - tem a mostrar, para o atual cenário da música e do rap, é diferenciado. E acredito que “BOOM BAP”, do seu novo álbum Alligator Bites Never Heal (2024), seja o cartão de visita a todos que, daqui em diante, se darão com essa diferença:
“Pega o Top no telefone/ Diz pra eles que é tudo rap, mano/ Diz que é real, e é rap/ E faz boom, e faz bap/ E dá um bounce, e dá uma palma /E esse house, e é trap/ É tudo isso / (Eu sou tudo isso!)”
“Eu sou tudo isso”, uma voz complexa, aberta a falar de suas vulnerabilidades mas também fazer piadas, brincar com flows e cantar com grande lirismo inspirada em outras vozes como SZA, Kendrick Lamar, Nicki Minaj e Ye mas que, em última medida, demonstra soar simplesmente “como Doechii. Este é um feito de originalidade para alguém tão cedo em sua carreira mainstream”, como nos diz a revista Rolling Stones em sua resenha de Alligator Bites Never Heal.
Se antes Doechii estava sempre ali, a espera de uma súbita epifânia, agora se torna uma voz inevitável.
Sem dúvidas, vai valer o seu play.
O álbum está em todas as plataformas de streaming.
[NEWSLETTER] - NOTICIAS DE CASA - DANILO BRANDÃO
Notícias de casa é, segundo seu idealizador, “uma newsletter de ensaio. ensaio é a arte de pensar livramente. escolher um caminho sem ter a necessidade de chegar a algum destino. por aqui, pretendo escrever com calma. respirar.”
Por certo, se algo que se pode encontrar na novedosa newsletter de Brandão, a quem admiro desde meus dias como editor da revista ano i: ensaio, é, justamente seu compromisso com o descompromissado gênero do ensaio.
Em linhas ágeis, leves, Danilo, como um experiente praticante de freediving, parece, a cada novo texto, tomar um longo respiro antes de nos por em águas cada vez mais profundas: de uma memória de infância, surge uma história coletiva; da leitura de Cine Subaé: Escritos sobre cinema (2024), temos o vislumbre da própria mente de Caetano Veloso; da realização que o trabalho cansa, refletimos sobre as demandas impossíveis do capitalismo e suas relações raciais-pessoais.
E quando nos vemos em êxtase, em apneia, com Danilo respiramos.
Deixo aqui, então, minha indicação à Notícias de casa e o convite que nos deixa Brandão para com ele respirar.
Valeu demais a indicação, querido! To sempre por aqui torcendo por mais uma edição também!